quarta-feira, 22 de junho de 2011

Hormônios em Fúria!





Esta postagem inaugura, como prometido, a temporada de resenhas de livros neste blog. Começamos com "Os Herdeiros dos Titãs", romance de fantasia medieval escrito por Eric Musashi.


Antes de entrar em cheio no tema, porém, permitam-me uma breve digressão para que se compreenda meu "estado de espírito" durante toda a leitura desse livro. Eu era um adolescente quando comecei a escrever meu primeiro romance, e era de fantasia medieval. No momento de iniciar esta resenha, dei-me conta de que nem me lembro mais do título, mas era uma história passada num país-continente que inventei chamado "Gardja". Um jovem presencia a tentativa malograda de assassinato de uma alta autoridade religiosa, e sendo erroneamente incriminado é obrigado a fugir de sua pacata vila. Ao mesmo tempo, forças malignas há muito tempo adormecidas dão os primeiros sinais de estarem despertando uma vez mais em diversos pontos do continente. Eu escrevia esse livro (que nunca foi concluído) usando caneta esferográfica, em um caderno de espiral. Sentia culpa por estar escrevendo sobre fantasia medieval num país onde não houve Idade Média, mesmo que meus nomes de lugares e pessoas fossem fictícios e "impessoais" no que se refere a países conhecidos. Escrevia inspirado por minha leitura do único autor de livros de fantasia em que se conseguia por as mãos naquela época, J.R.R.Tolkien (que eu havia lido e pensado : "Isso daria um filme sensacional!" Mal sabia eu...). E comecei a me exasperar porque a viagem inicial de meu protagonista ia se estendendo e se estendendo por intermináveis páginas, e a ação propriamente dita estava longe de começar. Nem cogitei em transformar minha obra numa trilogia, como está tão em moda ultimamente, principalmente no meio dos escritores iniciantes que não têm noção da fria em que estão se metendo com uma ideia assim. Mas o mais bacana de tudo, o que eu mais gostava, era de criar meu mundo ficcional. Desenhei um mapa detalhado, com os nomes das províncias, as cidades, dos rios e principais acidentes geográficos, e criei características para o povo de cada lugar. Inventei as bases de um alfabeto fictício, e as primeiras regras de gramática para usá-lo. Mas como já adiantei, tudo isso se perdeu como lágrimas na chuva(copyright by Roy, Nexus 6).


Lendo "Os Herdeiros dos Titãs", de Eric Musashi, todas essas recordações voltaram embaladas por uma suave e doce nostalgia. O livro relata a saga de um pequeno grupo de personagens, alguns em fuga após uma rebelião desajeitada e um assassinato acidental, outros buscando a reunião de dignatários credenciados a decidir a respeito de uma futura campanha de conquista, em um reino comandado por uma suposta rainha-deusa imortal e suas cinco eminências pardas encapuzadas. É basicamente uma longa viagem dividida em capítulos, sendo que ao final todos os personagens se reúnem para o desfecho dramático.


Duas coisas, logo de cara, você pode perceber a respeito de Eric Musashi, o autor: ele é um escritor jovem, e esse é seu primeiro romance. Isso traz duas consequências, uma boa e outra ruim. A boa é que ambos os fatores estão fadados à resolução, com o passar inexorável do tempo e o aumento da experiência. A ruim é que essa juventude e inexperiência têm efeitos impactantes no livro, sendo responsáveis por basicamente todas as suas deficiências, que analiso em primeiro lugar.


Um "macete" que aprendi com os editores, em termos de obras longas como um romance, é que você tem que fisgar os leitores nas primeiras trinta páginas, ou uma boa parte deles abandonará o livro. Isso fica difícil em "Os Herdeiros...", uma vez que nas primeiras quarenta páginas o leitor, que ainda não passou por uma etapa fundamental da leitura (saber quem é o protagonista!), passa por nada menos que três saltos cronológicos diferentes, para o passado e para o futuro, o que nessa etapa da leitura gera confusão. Uma delas, pelo menos (o primeiro encontro entre Téoder e sua amada Faná), poderia ser deslocada para mais adiante, na forma de uma reminiscência. Isso inclusive intensificaria o efeito dramático do sofrimento de Téoder, uma vez que muito precocemente somos informados de que a jovem foi morta por suas próprias mãos.


Além disso, Musashi parece ansioso em explicar desde logo as particularidades do mundo que criou, e as páginas iniciais estão abarrotadas de notas explicativas sobre calendário, pontos cardeais, contagem de tempo e distâncias, etc., que quebram o ritmo da ação e poderiam perfeitamente ser inseridos com mais suavidade ao longo da trama. A propósito, em minha opinião nem seria necessário inventar novos critérios para distância e contagem de tempo, por exemplo, pois isso pode confundir desnecessariamente o leitor e nada influencia na trama principal. Essas notas explicativas seguem abundantes por toda a obra, incluindo dados sobre história, mitologia, geografia e costumes locais, de uma forma que muitas vezes continuam quebrando o ritmo. Nesse ponto até compreendo Musashi, pois como disse na minha reminiscência inicial, essa tentação é praticamente irresistível; apenas acredito que, com tempo e experiência, esses dados serão acrescentados ao texto de maneira mais suave.


Em termos de enredo, alguns pontos "desajeitados" que em grande parte também podem ser atribuídos à inexperiência do autor: primeiro, a morte precoce de um personagem no momento exato em que começava a se delinear um promissor triângulo amoroso, morte essa que (pelo menos até agora) teve uma importância praticamente irrisória em tudo o que acontece depois. Mas como o final sugere uma continuação da saga, é algo que tem o potencial de ser solucionado. Segundo, Musashi abusa de alguns recursos de linguagem, que apesar de lícitos acabam comprometando a leitura por serem usados à exaustão; por exemplo, a expressão "um tanto..." é usada precendendo algum adjetivo pelo menos três ou quatro vezes por capítulo. Terceiro, ele usa algumas expressões que soam contraditórias quando usadas juntas, e mesmo que sejam possíveis, em termos literários soam estranhas. Por exemplo, corações que batem "descompassados em uníssono", "chuva fraca e copiosa", ou sol combinado com uma "chuva torrencial". Algumas expressões, principalmente nos diálogos, poderiam na norma culta serem substituídos com ganho em qualidade do texto, como "ha-ha-ha" ou "argh".


A narrativa de Musashi é extremamente visual, e isso em alguns pontos desvia o foco do essencial da cena (p.ex.: "a garota (...) estava muito abalada, e nem percebia que os seios balançavam enquanto corria alucinada."). A onisciência do narrador, em alguns momentos, também se perde de forma desnecessária (p.ex.: "...gritou Arion, depois de atacar Nagos com uma espada de telapuro apanhada não se sabe onde."). Ele também faz uso, vez ou outra, de expressões pouco literárias como "nos conformes", "dar uma bronca" ou "atemorizada como bicho do mato". Entenda-se, tais expressões estariam melhor encaixadas em textos mais descontraídos, mas numa saga de fantasia medieval acabam funcionando como uma pedra no feijão. O mesmo acontece (com maior repercussão ainda) nas falas de alguns personagens, como quando a rainha-deusa protesta porque as pessoas vieram "fazer bagunça no meu castelo".


Alguns trechos acabaram me divertindo muito pelo humor involuntário que evocam. Por exemplo: "Sua barba estava feita, e ele tinha tomado banho recentemente, talvez neste mesmo dia, pois cheirava bem." Ou nesta explicação, após a descrição do ambiente altamente promíscuo e libertino vigente numa festa em Catebete: "Com tanto incentivo à cópula - como à bebida e ao banquete -, o uso de métodos contraceptivos, e as constantes baixas na invasão das Planícies Proibidas, uma vez que não havia guerras externas, eram o que protegia os atalais de problemas de superpopulação." Ou quando o jovem Arion, observando sua outrora amiguinha de infância Ariádan entrando nua nas águas de um rio, começa a perceber as novas curvas de seu corpo de mulher e imagina seus beijos... enquanto chupa uma laranja.


Isso me remete a uma característica muito peculiar e curiosa de "Os Herdeiros...": a maioria absoluta dos principais personagens, com a exceção provavelmente única de Téoder, dos Encapuzados e da rainha-deusa Quetabel, está na faixa etária entre vinte e trinta anos. No entanto, seu comportamento às vezes sugere uma idade ainda menor, com ações e reações típicas da fase adolescente, quando os hormônios se encontram em ebulição máxima! A própria Quetabel, uma mulher de mais de setecentos anos de idade, tem reações espantosamente juvenis, como quando Téoder se esquece de seu aniversário, ou em suas explosões de ciúmes diante das mais irrisórias insinuações. É curioso como nos três casos de relacionamento sexual mais explícito (Arion & Ariádan, Téoder & Quetabel, Luredás & Neara), as mulheres são deliciosamente atiradas, enquanto os homens são desesperadoramente travados, cada qual com seu motivo: Arion por sua confusão de sentimentos por Ariádan, Téoder por sua culpa, Luredás por estar se envolvendo com a esposa de um amigo); é sintomático que as três acabem "pagando o pato" por esse assanhamento, sendo deixadas para trás logo após o ato. Outra característica altamente testosterônica, vigente principalmente entre os personagens masculinos, é uma introspecção mal-humorada que sublinha praticamente todos os diálogos. Todo mundo parece ter algo a esconder, e uma relutância permanente em dar informações cria uma tensão à flor da pele. A rudeza mútua permeia as conversas, e o tempo todo são dadas "más respostas", de forma que os personagens estão constantemente pedindo desculpas uns aos outros por suas palavras. No entanto, quando se decidem a revelar o que econdem, a maioria deles acaba até mesmo se excedendo nas informações, antes de retornar rapidamente à atitude reservada de antes. A óbvia metáfora da espada como arma dos guerreiros, com todas as suas peculiaridades e virtudes, é uma constante ao longo da trama (curiosamente, a arma da única mulher explicitamente guerreira é uma lança). Mesmo quando Musashi toma o cuidado de tentar afastar a conotação sexual de um acontecimento, ele inadvertidamente acaba atraindo a atenção do leitor exatamente para esse aspecto ("Arion foi correndo, e com um salto montou em Valente. Agarrou-se na cintura de Halá, mas sem malícia."). Mais adiante, o interesse nascente entre Ádiler e Helá também evolui rapidamente para temperaturas bastante sensuais.


Tudo isso dá um tempero especial à história, tornando-a mais divertida, mas existem alguns problemas que considero imperdoáveis. O primeiro, e quanto a isso sou chato mesmo, é que uma revisão um pouco mais cuidadosa evitaria erros de edição graves, inclusive no uso da crase. Também no caso de Nábia e Ostes, as únicas personagens que curiosamente falam em segunda pessoa, observei que em pelo menos um momento ambas "escorregam" na conjugação. Na página 109, uma cena sensual entre Luredás e Neara salta bruscamente e sem aviso para uma cena sensual entre Arion e Ariádan. Precisei voltar atrás e reler, pois me pareceu que havia perdido uma parte do texto. Em termos de enredo, a desidratação de Ariádan na primeira parte da viagem me pareceu absurdamente acelerada, inclusive porque tudo sugere que os personagens acompanhavam o curso de um rio. Também me soou estranho que, num mundo que apesar de medieval parece haver todo um cuidado com questões éticas e morais (obviamente adequadas aos parâmetros locais), seja encarado com naturalidade pela maioria das pessoas um sacrifício humano e uma cena de necrofagia realizados em público e em plena luz do dia. Algo que me pareceu uma anacronia foi a definição de uma personagem como "enfermeira", sendo que em nosso mundo esse termo só começa a ser usado a partir do século XIX, depois de Florence Nightingale. E mais ao final, um personagem retira um arco de dentro da própria roupa (!), que precisa ter tamanho suficiente para lançar uma flecha e atingir outro personagem que tenta fugir a galope.


Mas como eu disse no princípio, a grande maioria dos problemas e deslizes podem ser solucionados com o simples amadurecimento de Eric Musashi, em idade e como escritor. Uma coisa é certa: "Os Herdeiros dos Titãs" proporciona uma leitura agradável e muito divertida. O público juvenil, sobretudo, apreciará demais essa leitura. A complexidade do mundo criado pelo autor é impressionante, e percebe-se nas entrelinhas um amplo trabalho de pesquisa, principalmente nos aspectos mitológicos. Ao final do livro a maior parte das principais questões fica solucionada, mas restam os inevitáveis ganchos para pelo menos uma continuação. Faz-se necessário, por exemplo, um retorno às personagens deixadas para trás, e a campanha de conquista que se descortina pela frente. O mistério por trás da rainha-deusa e seus Encapuzados permanece, embora (salvo engano) o livro já deixe pistas significativas para o que está por trás desses personagens.


Uma coisa é inegável: ao contrário do meu pobre mundo de Gardja, Eric Musashi conseguiu piublicar seus "Herdeiros..." numa bela edição de linda capa e elevada qualidade gráfica. O que virá a seguir depende quase somente de sua perseverança, e no pouco contato (virtual) que tive com o autor, me parece que perseverança é o que lhe sobra. Por isso acredito que este livro é algo de que ele deve se orgulhar muito, e minha aposta é de que, no futuro, esses motivos de orgulho seráo ainda maiores.


domingo, 19 de junho de 2011

O Preto, o Branco, o Cinza e os Genes

Aviso: contém spoilers!




Nos anos 60, o genial Stan Lee (et cols.) dava uma nova roupagem àquela que Isaac Asimov já havia chamado de "Síndrome de Frankenstein", ou o medo daquilo que é diferente de nós, transferindo essa situação para o coletivo da sociedade quando criou os "fabulosos X-Men". Os jovens mutantes, que "juraram proteger aqueles que os temem e odeiam" (aka NÓS, os humanos!), exibiam através desse subtítulo-slogan a nobreza e o desprendimento que os credenciavam a se chamarem de "herois". Na virada do século, nunca a metáfora de Lee foi tão verdadeira e contemporânea, no momento em que nos defrontamos, em todo o mundo, com as guerras étnicas e religiosas, e com o ódio e a violência decorrentes da discriminação racial e/ou sexual.




O filme "X-Men: First Class", agora num cinema perto de você, costura ideias já divulgadas nos quadrinhos com pequenas inovações no cânone, para relatar a origem do grupo underground de mutantes, tendo como pano de fundo o conhecimento mútuo, a amizade e finalmente o rompimento dos dois maiores mentores da raça: o Professor Charles Xavier e Eric Lensherr, o Magneto.




Antes de assistir o filme, possivelmente devido à atualidade do tema (embora a trama ocorra nos anos 60), ouvi mais de um comentário no sentido de que este era o "melhor filme dos X-Men". Com efeito, a caracterização e evolução dos personagens é consistente, divertida e, acima de tudo, respeitosa para aqueles que já eram fãs das histórias em quadrinhos. A trama se revela inteligente, na medida em que aproveita um fato histórico real, a Crise dos Mísseis Cubanos que, na década de 60, quase atirou o mundo numa Terceira Guerra Mundial, inserindo os mutantes da ficção como personagens coadjuvantes do drama e protagonistas do fim da crise. Usa, inclusive, imagens reais e discursos verdadeiros do presidente John F. Kennedy veiculados pela mídia da época. Para os fãs, um bonus impagável é a participação especialíssima de Wolverine no filme, interpretado pelo ator que já se uniu indissoluvelmente à sua imagem, Hugh Jackman.




No entanto, um comentário em particular de um colega, antes que eu visse o filme, me chamou a atenção a ponto de eu dar um foco especial ao aspecto abordado. Ele disse: "Cara, eu comecei até a torcer pelo Magneto...(pausa)... se bem que ele fez umas coisas muito erradas."




Se você prestar bem atenção, vai notar que "X-Men: First Class" retrata a transição entre a ingenuidade dos anos 60 e a complexidade dos julgamentos dos dias atuais. No início você tem uma ideia clara, claríssima, de quem são os mocinhos e de quem são os vilões: nazistas X judeus, americanos X russos, mutantes maus X mutantes bons. Tudo preto no branco. No meio disso cresce a figura de Eric Lensherr (futuro Magneto), vítima do Holocausto que vê sua glória pessoal emergir do horror, e transita pela linha escorregadia entre o certo e o errado movido pela dor e pelo ódio. Sua lenta e sofrida redenção ocorrerá pelas mãos generosas do amigo Charles Xavier, que primeiro salva sua vida e depois dá mostras de que salvará sua alma. No final do filme, porém, quando se afasta a ameaça do inimigo mais óbvio, o espectador percebe, estupefacto, que não existe mais preto nem branco. Tudo são, na verdade, tons de cinza. No momento em que Magneto finalmente toma a decisão a respeito de seu caminho, até mesmo o nêmese Xavier é obrigado a admitir que ele tem razão em seus argumentos. A verdade que surge, quando americanos e russos deixam de ser adversários ideológicos irreconciliáveis para se tornarem uma coisa só, a Humanidade, e quando o governo americano deixa claro que o conceito de aliado ou de adversário é apenas uma questão de conveniência momentânea, é de que há diversas maneiras de se encarar uma realidade e de reagir a ela. Aos jovens mutantes, no momento da cisão definitiva, é inclusive permitido o uso do livre arbítrio: ouvir as argumentações de cada facção e escolher o caminho a ser seguido.




Essa ambiguidade quanto ao certo e ao errado já existe no mundo das histórias em quadrinhos de super-herois já faz algum tempo. O entendimento de que o certo e o errado existem dentro de cada um, e de que cada ser está permanentemente tentado a seguir por um caminho ou por outro dependendo dos estímulos a que seja mais suscetível, é o que elevou às alturas a popularidade dos chamados "anti-herois", ou herois de moralidade ambígua, como é o caso do Justiceiro e de Wolverine (Marvel), do Lobo (DC) e de John Constantine (Vertigo), por exemplo.




O mal, na Criação, é relativo. Sua existência se explica na medida em que na Natureza as coisas se definem a partir dos opostos: a escuridão é a ausência de luz, a doença é a ausência de saúde, a morte é a ausência de vida, e estamos todos os dias nos defrontando com essas realidades em variáveis tons de cinza. Citando outra clássica (e espetacular) obra dos quadrinhos da linha Vertigo, Sandman, recordo-me de uma historia onde a Morte (uma linda mocinha dark, irmã mais nova do Sonho), é interrogada por um outro personagem a respeito do sentido de sua (a dela) existência. A Morte responde: "Como você iria saber o que é um dia bom, se nunca tivesse tido um dia ruim?"




Citei esse exemplo e tratei de forma mais ampla dessas questões no meu primeiro romance publicado, Quintessência, que você certamente já leu.




Mas no momento atual, ao assistirmos "X-Men: First Class", nos salta aos olhos o seguinte fato: quando Magneto faz pararem no ar os diversos mísseis lançados pelas duas esquadras humanas, como uma Espada de Dâmocles da era atômica, e os lança de volta contra os navios que esperam impotentes como "sitting ducks", no melhor uso possível da expressão original em inglês, você, espectador, se pega torcendo por Magneto! Mas como pode ser? Você, humano (até prova em contrário), torcendo contra a Humanidade e a favor dos mutantes?! O que acontece de verdade é que você, diante dos fatos expostos, não está torcendo pelos mutantes; está torcendo pela justiça. Numa questão de minutos sua observação recolheu os elementos de juízo oferecidos, entendeu, analisou, e sua razão emitiu o veredito. Assim você tomou o partido dos "filhos do átomo". E no mundo real da luz, das sombras e dos tons de cinza, acontece igual.




No momento de tomar partido entre o grupo de Xavier e o de Magneto, o problema se repete de forma mais sutil: diante dos fatos, qual plano de ação futura é o melhor? A violência e a intolerância presentes nas entrelinhas do discurso de Lensherr nos parecem perigosas; porém, a ideia de bondade cristã de Xavier, dar a outra face a quem nos estapeia, já nos parece fora de moda e inoperante.




Em conferência pronunciada no mês de maio de 1940 (portanto, durante a Segunda Guerra Mundial), o humanista argentino Carlos Bernardo González Pecotche disse o seguinte:




"Esta tragédia que estamos presenciando nos mostra, também, o que podem fazer as legiões dos maus pensamentos, quando estão unidos, se as forças do bem, mesmo sendo mil vezes superiores, estiverem desunidas. E eis, então, como se cimentou na mente dos homens um falso conceito: o de que basta ser simples e bom no significado comum da palavra, e que esse pensamento de bondade seja pacífico e suave em todos os aspectos que ela apresenta. Se os homens são conscientes de que possuem, por exemplo, valores mentais como os que acabo de citar, eles precisam saber que, para conservá-los diante do mal, devem ao mesmo tempo contar com pensamentos enérgicos, dotados da energia necessária para que possam construir uma completa defesa para si mesmos e um auxílio para as mentes de seus semelhantes."




Para solucionar satisfatoriamente a questão, portanto, seria o caso de ter bem claro: quais seriam esses "valores mentais" que merecem ser conservados e defendidos? E o mais importante: como "ser consciente" de que se os possui? Afinal, como bem destacou Magneto, e de acordo com a jurisprudência criada pelo Tribunal de Nuremberg, o argumento de que "eu só estava seguindo ordens" não é apenas inválido, mas perigoso. No nosso dia a dia, a cada atitude tomada ou juízo emitido, seria o caso de se perguntar: ordens de quem?




Mas isso é tema para outro filme...

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Exorcizando um comichão...




Sabe aquele comichãozinho indefinido que fica te incomodando o tempo todo, meio no consciente, meio no subconsciente, sem que você lhe dê a devida atenção, e assim ele não passa? Quase uma macacoa? Pois eu estava com um desses, e decidi encará-lo de frente. Tem a ver com o tal "politicamente correto".


Lembro-me de quando li sobre isso em algum lugar, já faz alguns anos. Uma matéria sobre essa nova moda, surgida (que surpresa!) nos EUA. Na época achei meio cômica, essa ideia de mudar o nome das coisas para, de algum modo, atenuar o conteúdo que elas continuam tendo. Outras pessoas com quem comentei também acharam engraçado, como se fosse um criacionismo, ou uma cientologia da vida. Acontece que, nesse mundo que assumiu o tamanho de um "quarteirão global", a coisa cresceu e se espalhou. Pior: foi assumida como cool pela intelectualidade de vários países, incluindo o Brasil, fazendo jus a seu status de nação em desenvolvimento. Foi assim que a coisa pegou por estas bandas. É, mes amis, a coisa ficou afrodescendente...


O "politicamente correto" é uma forma politicamente correta de censura. Obviamente, seus principais defensores são as vítimas de qualquer forma de discriminação, como os negros, os homossexuais, os deficientes físicos, os idosos. Fazem coro os rincões mais hipócritas da elite intelectual, funcionando como o cimento que sustenta essa ridícula fachada. O que essas "minorias discriminadas" não percebem é que aderir e defender o "politicamente correto" não muda em essência, e não melhora em absolutamente nada sua condição em um nível de profundidade maior que o de um pires. Sim, a discriminação tem que ser frontalmente e exemplarmente combatida, e para isso existem as leis e a regulamentação acessória, que garantem a todo cidadão ser tratado com igualdade e sem agressão verbal, física ou moral por parte de qualquer outro cidadão. Isso sim, é o que vale e o que surte efeito. Agora, convenhamos: chamar negro de afrodescendente não o torna menos preto. Chamar homossexual de homoafetivo não o torna menos gay, nem o velho fica mais jovem quando muda de "terceira idade" para "melhor idade". Mas o pior de tudo é que, além de não alterar em nada a condição do discriminado, a mudança de palavras também não atua em nenhum sentido para atenuar a discriminação, o desprezo, a agressividade ou a atitude preconceituosa do indivíduo que detém essas coisinhas feias guardadas dentro de si. Quem é racista e fala "negro", não fica nem um pouco menos racista quando fala "afrodescendente", o que faz do "politicamente correto" uma forma de hipocrisia, uma maquiagem carregada, superficial e que não contribui em nadica de nada para melhorar a situação das minorias e fazer evoluir nossa condição social. Da mesma forma que a cultura estadunidense costuma ser o supra-sumo do entretenimento, mas não alcança o nível do subcutâneo, voltada exclusivamente para fora do ser humano, os entusiastas do "politicamente correto" querem fazer de nossa cultura sua Hollywood pessoal. O que é necessário, e muito necessário mudar urgentemente, é o conteúdo por trás das palavras, e não sua forma externa. Se na História do Brasil o termo "preto" foi carregado de conteúdo pejorativo, é preciso que primeiro se faça com que as novas gerações percebam esse erro e a enormidade desse absurdo, e a partir daí modifiquem, primeiro dentro de sua razão e de seu sentir, e depois nas suas relações com aqueles que os cercam, o recheio que vai por trás do termo. Porque, como o ser humano, as palavras também têm um corpo (a palavra escrita), uma alma (a palavra falada) e um espírito (o significado da palavra, o conceito que vai por trás dela). Enquanto o "politicamente correto" pretende alterar o corpo e a alma da palavra, maquiando-a como uma velha prostituta (ou eu deveria estar falando "profissonal do sexo"?) carrega nas cores e nas medidas das roupas para vender uma imagem que lhe renda mais clientes e aumente seu faturamento, é preciso atuar na causa, e modificar o espírito das palavras.


Recentemente participei de um vibrante e proveitoso arranca-rabo (e quero usar essa palavra aqui antes que me obriguem a dizer "extirpa-nádegas") em uma comunidade do Orkut a respeito justamente do racismo. Percebi, divertido, como as pessoas preferem negar que a cultura do país evoluiu, de uma mentalidade francamente racista (e socialmente aceita com naturalidade), influenciada pelas ideias eugenistas europeias e registradas para a posteridade nas obras de vários escritores consagrados, para uma cultura com uma visão crítica aguda o suficiente para condenar e elaborar leis que condenam essa atitude. Preferem simplesmente rotular o tal autor como "racista", condená-lo, e não se fala mais nisso. Não se leva em consideração o contexto, e por isso nada, absolutamente nada se aprende.


Falo de autores como Monteiro Lobato (que foi o estopim da discussão), Leopoldo Lugones, José de Alencar, Jorge Amado e até Gilberto Freyre. Sim, o autor de "Casa Grande & Senzala", a obra que é citada por muitos como o marco da virada de uma mentalidade onde a mistura de raças era sinônimo de decadência para a ideia de que essa miscigenação trazia benefícios inquestionáveis, em seus primeiros tempos registrou, como os outros citados e muitos mais, ideias racistas ou discriminatórias em livros, artigos de jornais, declarações pessoais, etc.


Como devemos nos comportar em relação a isso? Se Monteiro Lobato sedimenta seu racismo no romance "O Presidente Negro", então OK, o cara é racista... mas e daí??? O que fazemos com isso no século XXI? É o caso de censurar a obra, banindo-a como (não a) vejo em mais de uma lista de obras do autor em sites da internet? Reescrever as obras, como querem fazer os americanos com Mark Twain? Proibir "Caçadas de Pedrinho" na educação infantil, como pretendem nossos "educadores"? Melhor não seria promover uma leitura dirigida, estimulando as crianças e adolescentes a pensarem por si mesmos, de forma que compreendam o contexto psicológico da época, entendam que nós evoluímos desde ali, e que manter aquela postura retrógrada hoje em dia é muito, muito ruim? Não há mais benefício nisso do que em varrer nossos podres para debaixo do tapete psicológico?


Minha esperança é que chegará o dia em que, da mesma forma como hoje torcemos o nariz e abanamos a cabeça diante das ideias eugenistas europeias que consideravam a mistura das raças um sinal da degradação de um país, um dia alguém vai olhar para trás e agir da mesma maneira em relação à época em que as pessoas levavam a sério esse negócio de "politicamente correto". Se não, pode chegar o dia em que nossa hipocrisia cresça tanto e extravaze pelos poros, e contamine o ar que respiramos, e ninguém vai nem ligar se um desses políticos highlanders, que só desaparecem do cenário se tiverem literalmente a cabeça cortada, chegar ao cúmulo de assumir a presidência do Senado e mandar tirar da galeria de fotos históricas aquelas que fazem referência ao impeachment do Collor. Pode ser que ele diga que aquilo "é um evento menor, que não devia ter acontecido", descendo mais um degrau na fossa imunda do "politicamente correto", e vai ficar por isso mesmo. Vocês duvidam? Pois esperem só pra ver...