domingo, 7 de dezembro de 2014

JECKYLL, HYDE E SEU PLANO DE SAÚDE


 
Ser médico não é fácil. Nunca foi. Não estou falando, aqui, dos anos a fio nos bancos de escola, dos plantões massacrantes nem da capacidade magayveriana de improviso, que é necessária para driblar o sucateamento das instalações e recursos da Saúde neste país.

     Hoje estou falando de lidar com a ansiedade do ser humano. Esta existe em qualquer nível de relacionamento médico-paciente. Por um lado, existe esse paradoxo do cliente que não se cansa de repetir que “médico não é Deus”, mas está permanentemente na expectativa de que o seu SEJA um. Mas fica mais claro nos atendimentos de urgência e emergência, onde o sofrimento e a dor do doente atingem seus níveis mais elevados, e até mesmo a calma e o distanciamento do médico, necessários para garantir uma conduta técnica e eficaz, são às vezes interpretados das mais diversas formas: insensibilidade, prepotência, mau humor, etcétera.

     Tomo a liberdade de transcrever aqui exemplos reais – e recentes - do que tem acontecido nos últimos tempos, de acordo com a experiência pessoal de um médico amigo, profissional das áreas de urgência e emergência:

     - “Uma pessoa me parou no meio da rua, solicitando que eu fizesse pedidos de exames para ela. Expliquei que ela tinha de se consultar com alguém, que não se faz isso no meio da rua. Ela achou ruim.”

     - “Três pacientes se atrasaram no consultório (adendo meu: no meu consultório, só hoje, quatro pacientes deram o bolo, faltando sem se justificar ou avisar). Todos reclamam quando o médico atrasa. E quando eles atrasam, o que fazemos? Mandamos para casa?” Experimente tentar não atender, por causa do atraso. AH!

     - “Um paciente de um colega me ligou pedindo encaixe, pois estava passando mal, e estava disposto inclusive a pagar uma consulta particular pelo incômodo. Autorizei, como de costume. Uma mentira deslavada. Ele não tinha nada, e ainda se consultou pelo convênio. Resultado: com o encaixe, acabo chegando atrasado ao plantão.”

    Porque médico tem isso: sai do consultório direto para o plantão noturno, e amanhã cedinho sai do plantão para o consultório. Com o atraso do meu colega por causa do encaixe, é bem possível que tenha encontrado alguém reclamando do atraso no plantão.

    Mas não quero correr o risco de descambar para o “mimimi”. Não é esse o meu objetivo. O que eu disse até agora todo mundo sabe, e cá entre nós, a maioria nem está se lixando. O que me chama atenção é o aumento da atitude agressiva, arrogante, intolerante do paciente em relação ao médico na medida em que o tempo passa. É fácil compreender isso num país onde o próprio governo federal promove uma campanha explícita de demonização da classe médica, jogando a população contra ela, como bode expiatório para o caos em que mergulhou a Saúde por óbvias razões de falta de investimento, desvio de verbas e corrupção desse mesmo governo. Recentemente, uma campanha veiculada pelo SUS ainda pretende – supremo absurdo – jogar o paciente negro contra o médico, taxando-o, nas entrelinhas, de “racista”. Assim, de maneira genérica e desavergonhada.

     O mais interessante é a postura “Jeckyll & Hyde” que adota o paciente, geralmente aquele que não tem razão, apenas descarrega toda a tensão e as frustrações de seu dia a dia no alvo da vez, o do jaleco branco. Por experiência própria, rarissimamente o paciente que desrespeita, desanca e ultraja a secretária na sala de espera faz o mesmo dentro do consultório. Entra calmo, doce, sorridente; dificilmente você acreditará que é a mesma pessoa que sua secretária vem, depois, informar que a chamou de “vagabunda” para baixo. O paciente que não tem a moral, a ética, o pudor de ser justo em suas reivindicações, aquele que no fundo sabe que não tem razão, é um Hyde na sala de espera e um Jeckyll no consultório. É um covarde, que não aprendeu em casa que direitos e deveres andam de mãos dadas, sob o olhar vigilante da responsabilidade, para que a liberdade possa existir.

     Recentemente, aprendeu a usar mais uma arma em sua pusilanimidade: as queixas feitas diretamente ao plano de saúde. Esses tipos comparecem á consulta, como de praxe, cheios de sorrisos. Brincam, conversam amigavelmente. Não se iluda. Quando chegar a notificação do convênio, pedindo-lhe “uma defesa em uma semana”, você não acreditará que é a mesma pessoa, tais os termos raivosos e agressivos que usará referindo-se a sua pessoa. Geralmente se queixará de aspectos que, houvesse questionado pessoalmente, você teria facilmente desfeito o mal entendido. Revelará um desconhecimento quase hilariante do funcionamento de um atendimento médico, ou da ciência envolvida nele, em queixas floreadas e descabidas.

     É óbvio que essa ferramenta é extremamente útil, nos casos em que as queixas são bem fundamentadas. No entanto, como toda ferramenta, o excesso de liberdade e a má educação tendem a conduzir a abusos. O que essa gente não percebe é que, com o mau uso, a própria ferramenta começa a cair em descrédito. As queixas vão ser analisadas por pessoal técnico, que conhece do assunto assim como o profissional que elabora sua defesa. Sendo assim, no momento de registrar sua queixa, esteja muito bem fundamentado; resista à tentação perversa de “enfeitar” ou exagerar em suas argumentações, sob pena de cair em descrédito e não lograr nenhum de seus objetivos possíveis: a correção de uma injustiça/mau atendimento, ou “ferrar” o infeliz para quem, pouco tempo atrás, você era todo sorrisos e salamaleques.

     Diz a lenda que começou a chegar no Céu um número cada vez maior de pessoas se queixando dos médicos, certamente vindos de algum governo petista. Jesus, preocupado, vestiu uma roupa branca, colocou um estetoscópio no pescoço e, disfarçado, baixou num ambulatório do SUS. Depois de fazer uns milagrezinhos de lambuja, como transformar água suja em antibiótico e multiplicar as macas, mandou entrar no consultório um paraplégico, vítima de um acidente de carro. Jesus colocou a mão numa perna do moço, e disse: “Mexa a perna!” Ainda que contrariado, fazendo cara de escárnio, o rapaz tentou... e a perna mexeu! Ainda estava surpreso, olhos arregalados olhando a perna, quando Jesus pôs a mão sobre a outra perna e falou: “Agora mexa esta perna!” E a perna mexeu! O moço mal se continha em seu espanto, quando Jesus falou: “Levanta-te e anda!” Não deu outra. O ex-paraplégico saiu dando pulos de alegria do consultório médico. Na entrada do posto de saúde encontrou o próximo paciente, que lhe perguntou a meia boca: “O médico é bom?” E ele, parando de pular e sussurrando: “Nada, nem mediu minha pressão!”

     Agora com licença, que tenho uma defesa por escrito para fazer.