O ano
de 2015 foi um ano triste para a ficção científica anglofônica. A polarização política
entre esquerda e direita, ou Democratas e Republicanos, já se refletia há
tempos no mercado literário de FC. A verdade é que a ideologia era apenas a
roupagem, a “justificativa” para lotear e dominar um mercado muito lucrativo
desse gênero de literatura. Como no campo político, era a esquerda que dominava
o status quo. Usando a velha artimanha de “acolher” as reivindicações das
diversas minorias, editoras ideologicamente afinadas com o governo Obama começaram
a dominar o mercado. Num site de uma dessas
editoras, eu mesmo vi, nas guidelines
para submissão de originais, a frase “estimulamos a submissão de pessoas
pertencentes a grupos minoritários que se sintam discriminados”, ou coisa
parecida. Nada contra uma empresa privada ter sua própria orientação
ideológica; o problema é que, para prêmios relevantes de alcance nacional dentro
da literatura, como o Prêmio Hugo (o mais importante nos EUA), começaram a se
formar lobbies para “vitaminar” a
indicação dos autores “de esquerda”, trabalhando nos bastidores para boicotar
os autores “de direita”.
Em 2015 veio a reação. Um pequeno grupo “não
alinhado” elaborou um protesto sob o nome de “Sad Puppies”, e iniciou um lobby para alavancar os autores “de
direita”, pegando o mercado de surpresa e conquistando uma participação
expressiva no grupo de finalistas do Prêmio Hugo. O grande erro desse grupo foi,
a fim de aumentar o número de votos, aceitar sua associação a outro grupo, denominado
“Rabid Puppies”, estes sim, formado
por pessoas violentas e de extrema-direita, atuantes no mercado de games para computador. A esquerda, é claro, reuniu os dois grupos num mesmo pacote, e a guerra declarada começou.
Esse triste episódio, chamado por muitos
de “Puppygate”, culminou na cerimônia
de entrega do prêmio Hugo 2015. Os acontecimentos são de um nível de baixaria
capaz de deixar os produtores de certos programas vespertinos da TV aberta
brasileira corados de vergonha. Não vou entrar em detalhes para não perder o
foco, mas a conclusão é que foi um momento muito triste e traumático para o
mercado literário de ficção científica em língua inglesa. Acompanhei tudo isso
de perto, por já ser, naquele tempo, participante da SFWA (Science Fiction & Fantasy Writers Association), a principal
associação de escritores do gênero nos EUA, que movimenta mais de um milhão de
dólares ao ano apenas promovendo a FC, valor de deixar qualquer autorzinho
tupiniquim com os olhos brilhando.
E aí chegamos ao ponto que justifica essa
longa introdução. A forma como a polarização esquerda X direita na política
brasileira, nos dias atuais, vem afetando o fandom
de literatura fantástica nacional, dentro e fora das redes sociais, me evoca
cada vez com mais intensidade o fantasma do Puppygate.
Os grupos fechados em torno de uma ideologia – e a hostilidade entre eles – já são
uma realidade. As “listas negras” de autores já existem, de lado a lado. Como
acompanhei nas listas de bate-papo da SFWA, as agressões mútuas e a quebra de
laços entre autores que já conviveram amistosamente já acontecem com
frequência, por razões alheias à literatura em torno da qual um amor em comum
os unia.
Há
algum tempo atrás, questionei no Facebook um autor nacional acerca do episódio
do Hugo 2015. Sabendo de sua orientação esquerdista, minha intenção era colher
elementos acerca de sua visão do caso, como observador que era, assim como eu.
De forma inesperada (mas nem tanto), ele ficou muito irritado, considerando
impertinência meus simples e muito honestos questionamentos, e rompeu seus
laços virtuais com minha pessoa. Quem me conhece sabe que estou pouco me lixando
para esse tipo de coisa. Sou muito aberto a conhecer gente boa, e tenho uma
quantidade suficiente de gente assim no meu círculo de amizades para me
importar com esses pobres de espírito que, ainda que se digam “defensores da
democracia”, são na vida incapazes de conviver com o contraditório. Mesmo gente
muito ilustrada, muito competente, cai vertiginosamente no meu conceito quando
age assim. Prefiro omitir, no momento, o rótulo que passo a dedicar a esses
elementos. Só o que me irrita, na verdade, é quando essa gente começa a falar
mal pelas costas, inclusive caluniando, como se diminuir o novo desafeto
servisse para diminuir sua vergonha pela própria incapacidade para o debate.
Estou sempre aberto a discutir com argumentos, mas a covardia dos que acusam
sem dar a oportunidade da réplica me decepciona e irrita.
Isso aconteceu com aquele “luminar” que
citei acima, quando foi a um podcast falar
sobre o episódio dos puppies e ME
criticou duramente, dizendo mentiras do tipo “ele mal sabe falar inglês” e “soube
dos acontecimentos do Hugo 2015 através de mim”. Claro que não citou meu nome,
por saber das possíveis consequências – nem todo covarde é burro -, mas
prometeu revelar em off aos
interessados. Mas olhem... passou.
No entanto, esse fantasma reaparece agora,
quando um amigo do Facebook manifesta sua tristeza por ter perdido a amizade virtual
(coisa doida dos dias atuais) de uma pessoa que respeitava, por razões
ideológicas. Simultaneamente, eu mesmo tenho sido vítima, uma vez mais, da
mesma atitude covarde dos que se afastam e começam a caluniar pelas costas,
estimulados por um outro tipo de pusilânime, aquele que continua fingindo ser
seu amigo, mas coloca com alegria lenha na fogueira onde o outro queima um
judas com a sua estampa.
Reforçando, não me interessa nenhuma
reaproximação com esse tipo de pobres de espírito. O que me entristece – e preocupa
– como autor de ficção científica e fantasia, é que temos no Brasil um mercado
já frágil, um preconceito gigantesco do mainstream
contra nossa “subliteratura predileta”, e em vez de nos unirmos, mantendo a
questão política à parte, nos precipitamos no mesmo erro dos americanos, que,
diferente de nós, possuem um navio bem mais forte e capacitado para sobrepujar
as tempestades.
Preocupado com isso, entrei em contato com
um dos meus amigos da SFWA, um escritor americano que foi finalista do Hugo
2015 e foi pego no fogo cruzado, sem ter tido a menor participação nas disputas
políticas que explodiram. Perguntei a ele, agora que a poeira baixou, se
ficaram sequelas do Puppygate no
mercado americano, e como estava o ambiente do fandom estadunidense. Postarei abaixo sua resposta original, e em
seguida minha tradução. Peço, desde já, desculpas por meus eventuais erros.
Afinal, como já disseram por aí, apesar de conversar regularmente com o pessoal
da SFWA eu sou o cara que “mal sabe falar inglês”. Então lá vai:
“The 2015 Hugo controversy exposed a fracture
that's only become more permanent over the past three years. Now there are two
opposing camps, and they don't talk to one another. The
"establishment" blacklists any authors identified as Christian,
Conservative and/or Republican. The dissidents have their own networks of
publishers and outlets. It's like apartheid in South Africa.
I'm not an active writer any more. After
working as managing editor at the local newspaper for three years, I had the
opportunity to buy out the owner at the start of this year. So I am
self-employed, and loving it. It took such a stroke of luck as a sign from God
that I have been wasting my time writing speculative fiction.
I don't miss it at all, and now I'm
ashamed I had anything to do with those assholes and heathens in the past. I'm
much happier. If I ever write anything in the future, I will use a pen name.
I can't imagine Brazil would ever get as
messed up as the US. We suffer because of our prosperity. There are a lot of
people who are only Americans because they want to make a fast buck. They are
stupid, greedy, and have no love for their country. I'm sure Brazilians have a
greater sense of patriotism and self-esteem. It would be hard not to.
Thankfully I live in Texas, where the
traditional values of the U.S. still hold sway. So its more comfortable.
The establish of s-f, like the
establishment in the nation as a whole, are sanctimonious snobs who sneer at
anyone who still believes in God and Country. S-F is just a lot farther along. I
doubt it could ever get that bad in Brazil.
Sorry for such a rant. I grew up loving
science fiction. Now I don't even read it any more. Too many bad associations.
You struck a nerve there, I don't even
THINK about writing science fiction any more. I so much enjoy owning and
operating my own newspaper.”
Tradução:
“A
controvérsia envolvendo o Hugo 2015 expôs uma ruptura que só se tornou mais
permanente ao longo dos últimos três anos. Agora há dois grupos opositores, que
não falam um com o outro. O “sistema” cria uma lista negra de quaisquer autores
identificados como cristãos, conservadores e/ou Republicanos. Os dissidentes
têm sua própria rede de editores e comercialização. É semelhante ao Apartheid
na África do Sul.
Não
sou mais um escritor ativo. Após trabalhar como editor do jornal local por três
anos, tive a oportunidade de comprar o jornal no início deste ano. Então sou autônomo, e estou adorando.
Considero um golpe de sorte, e um sinal de Deus de que estava desperdiçando meu
tempo escrevendo ficção especulativa.
Não
sinto a menor falta, e agora me envergonho de ter tido algo a ver com aqueles
idiotas e pagãos no passado. Estou muito mais feliz. Se eu por acaso voltar a
escrever algo no futuro, vou usar pseudônimo.
Não
consigo imaginar que o Brasil chegue a ficar arruinado como os Estados Unidos.
Sofremos por causa da nossa prosperidade. Há muita gente que só é Americana
porque quer fazer um pé-de-meia rápido. São estúpidos, gananciosos e não amam
seu país. Tenho certeza de que os brasileiros têm um grande senso de
patriotismo e autoestima. Seria difícil não terem.
Felizmente
vivo no Texas, onde os valores tradicionais dos Estados Unidos ainda têm peso.
Então é mais confortável.
O “sistema” da ficção científica, como o do
país como um todo, é composto de esnobes hipócritas que zombam de qualquer um
que ainda creia em Deus ou no país. A ficção científica apenas foi ainda mais
longe. Eu duvido que possa ficar tão ruim no Brasil.
Perdoe
meu discurso inflamado. Eu cresci amando a ficção científica. Agora eu nem leio
mais. Muitas associações ruins.
Você
cutucou um nervinho aí, eu sequer PENSO mais em escrever ficção científica.
Adoro gerenciar e atuar no meu próprio jornal.”
Como se vê, até lá a briga ideológica causou suas baixas. É trágico ver um bom escritor, finalista do Hugo, dizer essas palavras, não? Não penso que eu precise comentar muito
mais. Acho que já cumpri meu papel, mostrando o que vislumbro para o futuro ao
seguirmos o rumo que tomamos atualmente. Aprender com os erros do passado –
mesmo os alheios – costuma ser um conselho sábio para os que não querem passar
pelos mesmos sofrimentos.
A visão do meu amigo americano a respeito
de nós, brasileiros, me envergonha um pouco. Temo que, no final das contas, ele
esteja nos superestimando. Fica a minha certeza de que pensamentos e ideologias
desconhecem idiomas, e aqueles que os acolhem, em qualquer lugar do mundo, estão
fadados a pagar o mesmo preço. Só que, dependendo da capacidade de resiliência
de cada um, o fim pode acabar sendo trágico em alguns casos. Ouviu, Brasil?