segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

LOBATO, A BOLA DA VEZ



Tempos atrás pipocou nas redes a notícia de que algum “luminar” do governo petista (de triste memória) sugeria que se retirassem as obras de Monteiro Lobato das grades escolares, citando especificamente “Caçadas de Pedrinho”, por serem, segundo eles, racistas. O exemplo contundente eram falas da boneca Emília, depreciativas como de costume, dirigidas a Tia Nastácia. Lembro que escrevi sobre isso na época. Defendia, como me parece o mais razoável para qualquer um que seja capaz de pensar um degrau acima do que é capaz um poodle treinado, que, em vez de banir as obras numa versão light da fogueirona de Bebelplatz, as obras fossem usadas por educadores dentro de seu contexto. Em vez de empurrar o constrangimento para baixo do tapete, explicar às crianças, de forma evidentemente acessível a sua capacidade de entendimento, que existem atitudes e palavras que não devem, ou mais ainda, não podem ser usadas por pessoas boas ou bem-intencionadas. Você pode ir do palavrão comum ao racismo num pulo, e ensinar em vez de alienar.
     Bem, naquele momento o miasma cultural que apelidamos de “lacrosfera” não ficou feliz. E não está feliz de novo agora, quando o assunto volta à baila. Neste ano, quando a obra de Monteiro Lobato cai em domínio público; muito se especula sobre a forma como as publicações de seus livros, inclusive do Sítio do Pica-Pau Amarelo, serão tratadas de agora em diante. E (claro!) começam a pipocar as citações de livros e cartas de Lobato evidenciando seu racismo. Diante dos argumentos de que tais textos precisam ser analisados em contexto, as respostas são, como sempre, histriônicas: “Não existe contexto para racismo! Eu cuspo na cara de Monteiro Lobato! Que seja banido!”
     Pois muito bem: antes de seguir na leitura deste texto, você precisa olhar para dentro de si e certificar-se de sua inclinação no que se refere ao ponto discutido: raciocinar e ajudar no crescimento de si mesmo e dos demais, ou fazer sucesso “causando” no clubinho lacrador. Se for este último caso, sugiro que pare de ler imediatamente. Como eu disse, a partir de agora vamos raciocinar, e isso pode acabar sendo excessivamente cansativo para você. Mas se suas intenções são razoáveis, se está disposto a ler e pensar, vamos adiante.
     A História só se aprende verdadeiramente dentro do contexto dos fatos. Por que Dom Pedro proferiu o Grito do Ipiranga? Estava entediado? Filho rebelde? Havia pressões de grupos políticos interessados na desvinculação com Portugal? Que interesses eram esses? Por que Dom Pedro cedeu a eles?
     Você pode simplesmente acreditar no fato em si de forma religiosa e repetir até a exaustão nas provas da escola, mas estará perdendo a oportunidade de ENTENDER. E não existe nada mais prazeroso, para quem aprende, do que se enxergar como participante da experiência humana. Entender o contexto dá à razão os elementos para elaborar juízos e adquirir o conhecimento real.
     Voltemos então ao racismo de Lobato. Primeira pergunta: ele era de fato racista? Seus textos indicam que sim. Aqui se fecha a porta do cubículo mental do lacrador, e se abre o campo de investigação do ser inteligente: por que ele era racista? Permitam-me citar alguns fatos e personagens históricos, acompanhados de datas entre parênteses, essenciais para comprovar a importante questão da CONTEMPORANEIDADE.
     “Eugenia” é um termo criado em 1883 por Francis Galton (1822-1911), significando "bem nascido". Galton, influenciado pela obra de seu primo Charles Darwin, definiu eugenia como "o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações, seja física ou mentalmente". Essa linha de pensamento encontrou enorme acolhida nos ambientes intelectuais da Europa e, a partir do século XX, também nos EUA. A eugenia, tal como foi apregoada nesses locais, defendia a “pureza das raças”, e sinalizava a miscigenação como fator de decadência das mesmas. Sabemos como o sequestro dessa miragem por ideologias totalitárias levaria posteriormente a tragédias, cujo exemplo mais conhecido é o nazismo nos anos 30 e 40, mas vamos nos ater a esse início, quando o ser humano ainda não vislumbrava as projeções terríveis que a eugenia poderia acarretar.  Na época, a população inglesa crescia nas classes pobres e diminuía nas classes mais ricas e cultas, e se temia uma "degeneração biológica". Portanto, a eugenia logo se transformou num movimento que angariou inúmeros adeptos entre a esmagadora maioria dos cientistas e principalmente entre a população em geral, na sua época áurea (1870-1933).
     O Brasil, na virada dos séculos XIX/XX, sofria uma enorme influência cultural da Europa, e começava a abrir seus olhos e ouvidos para os EUA, onde, como já dissemos, a eugenia também encontrou solo fértil. É, portanto, perfeitamente natural que nossa intelectualidade (como ainda acontece hoje, e acontecerá sempre) se esforçasse em absorver o que de mais “moderno” viesse do Velho Mundo. O Brasil foi o primeiro país da América do Sul a ter um movimento eugênico organizado. A Sociedade Eugênica de São Paulo foi criada em 1918. Acabou se infiltrando em políticas de Estado voltadas para a saúde pública. Medidas que visavam a impedir a miscigenação, higienismo e eugenismo, se confundiam nesse período da História do Brasil. Entre os intelectuais eugenistas brasileiros que mais se empenharam na organização e divulgação do movimento destacam-se: Belisário Penna (1868-1939), Edgar Roquette-Pinto (1884-1954), Monteiro Lobato (1882-1948), Octávio Domingues (1897-1972), Oliveira Viana (1883-1951) e Renato Kehl (1889-1974).
     Ora, o escritor é o ser que carrega o fardo de retratar em suas obras, de forma voluntária ou não, o pensamento do tempo em que vive. Na França o escritor Jules Verne, em “Cinco Semanas Num Balão” (1863), dava um flagrante exemplo de que, ainda antes do movimento eugenista organizado, o pudor no tratamento da questão racial não fazia parte da preocupação ambiente; em dado momento, quando os personagens retornam ao balão após uma caçada na África, avistam de longe sua aeronave cercada do que acreditam serem nativos negros. Chegando mais perto, percebem que, na verdade, trata-se de um bando de macacos.
      H. P. Lovecraft (1890 – 1937) foi outro autor muito criticado por suas colocações racistas, mas que parecem estar inseridas, em seus textos, com a naturalidade de quem está familiarizado com conceitos eugenistas, e se depara com eles o tempo todo em seu dia a dia. Na Argentina, em seu conto “Yzur”, o escritor Leopoldo Lugones (1874 – 1938) afirma de forma despreocupada que “a juventude, como acontece com os negros, é a fase mais intelectual do macaco”.
     É bem possível que você tenha engolido em seco ao ler essas citações. De fato, para os dias de hoje, não há dúvida de que sejam inconcebíveis. Mas é preciso admitir que considerar Monteiro Lobato “desprezível” por suas colocações eugenistas equivale a considerar desprezível grande parte da humanidade letrada daquela época. Equivale a ridicularizar um cidadão europeu do ano 1400 por ser terraplanista.
     Melhor seria, em vez de proferir impropérios e rolar pelo chão, se debatendo em uma birra ideológica, educar as novas gerações no sentido de que, felizmente, a humanidade EVOLUI. Ao jovem contemporâneo deveria ser dada a chance de entender que ser racista, nos dias de hoje, é pensar como um homem do século XIX. Para o adolescente existem poucas coisas mais ofensivas do que ser considerado “ultrapassado”; portanto, colocar a questão do racismo na obra de Lobato e de tantos outros em contexto abre as portas para uma formação saudável de conceitos, muito além da superficialidade do que é “socialmente aceitável”, mas que continuaria escondido em algum canto obscuro da psicologia que não teve a chance de jogar uma luz, corajosa e clara, sobre o assunto.
     Já retirando a questão de seu contexto, quem é que ganha? Ninguém, com certeza. Bem, há quem ACREDITE que ganha: o “lacrador”, esbravejando de cima de seu caixotinho de madeira feito palanque, naquele momento de glória em que crê estar se colocando como um ser superior a ninguém menos que Monteiro Lobato! É uma ingratidão abjeta, ainda mais por se travestir de “intelectualidade”, pois a maioria dos que hoje erguem seu punho furioso passou sua infância embevecido com as histórias de Emília, Narizinho e Pedrinho, filhos da vaca outrora sagrada, mas que hoje oferecem em sacrifício num holocausto efêmero e egoísta.
     Repetindo e sublinhando, uma das maiores tragédias da humanidade reside em não ser capaz de aprender com a própria História. Desgraçado, ainda mais, aquele que insiste em preencher essa lacuna com o foguetório barulhento, mas pouco efetivo, do catecismo ideológico.