Tempos
atrás pipocou nas redes a notícia de que algum “luminar” do governo petista (de
triste memória) sugeria que se retirassem as obras de Monteiro Lobato das
grades escolares, citando especificamente “Caçadas de Pedrinho”, por serem,
segundo eles, racistas. O exemplo contundente eram falas da boneca Emília,
depreciativas como de costume, dirigidas a Tia Nastácia. Lembro que escrevi
sobre isso na época. Defendia, como me parece o mais razoável para qualquer um
que seja capaz de pensar um degrau acima do que é capaz um poodle treinado,
que, em vez de banir as obras numa versão light da fogueirona de Bebelplatz, as
obras fossem usadas por educadores dentro de seu contexto. Em vez de empurrar o
constrangimento para baixo do tapete, explicar às crianças, de forma
evidentemente acessível a sua capacidade de entendimento, que existem atitudes
e palavras que não devem, ou mais ainda, não podem ser usadas por pessoas boas
ou bem-intencionadas. Você pode ir do palavrão comum ao racismo num pulo, e
ensinar em vez de alienar.
Bem, naquele momento o miasma cultural que
apelidamos de “lacrosfera” não ficou feliz. E não está feliz de novo agora,
quando o assunto volta à baila. Neste ano, quando a obra de Monteiro Lobato cai
em domínio público; muito se especula sobre a forma como as publicações de seus
livros, inclusive do Sítio do Pica-Pau Amarelo, serão tratadas de agora em
diante. E (claro!) começam a pipocar as citações de livros e cartas de Lobato
evidenciando seu racismo. Diante dos argumentos de que tais textos precisam ser
analisados em contexto, as respostas são, como sempre, histriônicas: “Não
existe contexto para racismo! Eu cuspo na cara de Monteiro Lobato! Que seja
banido!”
Pois muito bem: antes de seguir na leitura
deste texto, você precisa olhar para dentro de si e certificar-se de sua inclinação
no que se refere ao ponto discutido: raciocinar e ajudar no crescimento de si
mesmo e dos demais, ou fazer sucesso “causando” no clubinho lacrador. Se for este
último caso, sugiro que pare de ler imediatamente. Como eu disse, a partir de
agora vamos raciocinar, e isso pode acabar sendo excessivamente cansativo para
você. Mas se suas intenções são razoáveis, se está disposto a ler e pensar,
vamos adiante.
A
História só se aprende verdadeiramente dentro do contexto dos fatos. Por que
Dom Pedro proferiu o Grito do Ipiranga? Estava entediado? Filho rebelde? Havia
pressões de grupos políticos interessados na desvinculação com Portugal? Que
interesses eram esses? Por que Dom Pedro cedeu a eles?
Você pode simplesmente acreditar no fato
em si de forma religiosa e repetir até a exaustão nas provas da escola, mas
estará perdendo a oportunidade de ENTENDER. E não existe nada mais prazeroso,
para quem aprende, do que se enxergar como participante da experiência humana.
Entender o contexto dá à razão os elementos para elaborar juízos e adquirir o
conhecimento real.
Voltemos então ao racismo de Lobato.
Primeira pergunta: ele era de fato racista? Seus textos indicam que sim. Aqui
se fecha a porta do cubículo mental do lacrador, e se abre o campo de
investigação do ser inteligente: por que ele era racista? Permitam-me citar
alguns fatos e personagens históricos, acompanhados de datas entre parênteses,
essenciais para comprovar a importante questão da CONTEMPORANEIDADE.
“Eugenia” é um termo criado em 1883 por
Francis Galton (1822-1911), significando "bem nascido". Galton,
influenciado pela obra de seu primo Charles Darwin, definiu eugenia como
"o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou
empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações, seja física ou
mentalmente". Essa linha de pensamento encontrou enorme acolhida nos
ambientes intelectuais da Europa e, a partir do século XX, também nos EUA. A
eugenia, tal como foi apregoada nesses locais, defendia a “pureza das raças”, e
sinalizava a miscigenação como fator de decadência das mesmas. Sabemos como o
sequestro dessa miragem por ideologias totalitárias levaria posteriormente a
tragédias, cujo exemplo mais conhecido é o nazismo nos anos 30 e 40, mas vamos
nos ater a esse início, quando o ser humano ainda não vislumbrava as projeções
terríveis que a eugenia poderia acarretar. Na época, a população inglesa crescia nas
classes pobres e diminuía nas classes mais ricas e cultas, e se temia uma
"degeneração biológica". Portanto, a eugenia logo se transformou num
movimento que angariou inúmeros adeptos entre a esmagadora maioria dos
cientistas e principalmente entre a população em geral, na sua época áurea
(1870-1933).
O Brasil, na virada dos séculos XIX/XX,
sofria uma enorme influência cultural da Europa, e começava a abrir seus olhos
e ouvidos para os EUA, onde, como já dissemos, a eugenia também encontrou solo
fértil. É, portanto, perfeitamente natural que nossa intelectualidade (como ainda
acontece hoje, e acontecerá sempre) se esforçasse em absorver o que de mais “moderno”
viesse do Velho Mundo. O Brasil foi o primeiro país da América do Sul a ter um
movimento eugênico organizado. A Sociedade Eugênica de São Paulo foi criada em
1918. Acabou se infiltrando em políticas de Estado voltadas para a saúde
pública. Medidas que visavam a impedir a miscigenação, higienismo e eugenismo,
se confundiam nesse período da História do Brasil. Entre os intelectuais
eugenistas brasileiros que mais se empenharam na organização e divulgação do
movimento destacam-se: Belisário Penna (1868-1939), Edgar Roquette-Pinto
(1884-1954), Monteiro Lobato (1882-1948), Octávio Domingues (1897-1972),
Oliveira Viana (1883-1951) e Renato Kehl (1889-1974).
Ora, o escritor é o ser que carrega o
fardo de retratar em suas obras, de forma voluntária ou não, o pensamento do
tempo em que vive. Na França o escritor Jules Verne, em “Cinco Semanas Num Balão”
(1863), dava um flagrante exemplo de que, ainda antes do movimento eugenista
organizado, o pudor no tratamento da questão racial não fazia parte da
preocupação ambiente; em dado momento, quando os personagens retornam ao balão
após uma caçada na África, avistam de longe sua aeronave cercada do que
acreditam serem nativos negros. Chegando mais perto, percebem que, na verdade,
trata-se de um bando de macacos.
H.
P. Lovecraft (1890 – 1937) foi outro autor muito criticado por suas colocações
racistas, mas que parecem estar inseridas, em seus textos, com a naturalidade
de quem está familiarizado com conceitos eugenistas, e se depara com eles o
tempo todo em seu dia a dia. Na Argentina, em seu conto “Yzur”, o escritor
Leopoldo Lugones (1874 – 1938) afirma de forma despreocupada que “a juventude,
como acontece com os negros, é a fase mais intelectual do macaco”.
É bem possível que você tenha engolido em
seco ao ler essas citações. De fato, para os dias de hoje, não há dúvida de que
sejam inconcebíveis. Mas é preciso admitir que considerar Monteiro Lobato “desprezível”
por suas colocações eugenistas equivale a considerar desprezível grande parte da
humanidade letrada daquela época. Equivale a ridicularizar um cidadão europeu
do ano 1400 por ser terraplanista.
Melhor seria, em vez de proferir impropérios e
rolar pelo chão, se debatendo em uma birra ideológica, educar as novas gerações
no sentido de que, felizmente, a humanidade EVOLUI. Ao jovem contemporâneo
deveria ser dada a chance de entender que ser racista, nos dias de hoje, é
pensar como um homem do século XIX. Para o adolescente existem poucas coisas
mais ofensivas do que ser considerado “ultrapassado”; portanto, colocar a
questão do racismo na obra de Lobato e de tantos outros em contexto abre as
portas para uma formação saudável de conceitos, muito além da superficialidade
do que é “socialmente aceitável”, mas que continuaria escondido em algum canto
obscuro da psicologia que não teve a chance de jogar uma luz, corajosa e clara,
sobre o assunto.
Já retirando a questão de seu contexto,
quem é que ganha? Ninguém, com certeza. Bem, há quem ACREDITE que ganha: o “lacrador”,
esbravejando de cima de seu caixotinho de madeira feito palanque, naquele
momento de glória em que crê estar se colocando como um ser superior a ninguém
menos que Monteiro Lobato! É uma ingratidão abjeta, ainda mais por se travestir
de “intelectualidade”, pois a maioria dos que hoje erguem seu punho furioso
passou sua infância embevecido com as histórias de Emília, Narizinho e
Pedrinho, filhos da vaca outrora sagrada, mas que hoje oferecem em sacrifício
num holocausto efêmero e egoísta.
Repetindo e sublinhando, uma das maiores
tragédias da humanidade reside em não ser capaz de aprender com a própria História.
Desgraçado, ainda mais, aquele que insiste em preencher essa lacuna com o
foguetório barulhento, mas pouco efetivo, do catecismo ideológico.