terça-feira, 2 de abril de 2019

O INFILTRADO



Dia 30 de abril de 1945. Após um flash luminoso, o esquerdista brasileiro se materializa dentro do bunker, ao lado de Adolf Hitler. O Führer quase morre de susto.
     - Quiporreéssa?...
     - Tranquilo, Adolf. Sou um viajante do tempo. Vim do futuro assistir pessoalmente a derrocada do maior líder da extrema-direita que o mundo já viu.
     Hitler olha em volta, assustado.
     - Extrema-direita? Onde? Cadê o maldito?...
     - Não vem com essa, meu caro. É você, lógico.
     Hitler arqueia as sobrancelhas e apoia o polegar direito no próprio peito. Depois vira o rosto meio de lado, estreitando os olhos, mas sem desviá-los do recém-chegado.
     - Hmmmmm, me desculpe, meu rapaz. Lamento se perdeu a viagem, mas deve haver algum engano. Eu sou socialista.
     - RÁ! – é mais um grito que uma risada, e Hitler dá um pulo para trás. – Nem vem com essa! Todos os historiadores sérios do futuro são unânimes em dizer que você é de direita. O nazismo é de extrema-direita! Até o Museu do Holocausto...
     Hitler dá de ombros.
     - Lamento dizer que você vai ter de voltar lá e corrigir isso. Ou mandar um deles aqui para falar comigo pessoalmente.
     Uma bomba explode em algum lugar acima, e filetes de poeira caem do teto.
     - Vai ser difícil você convencer alguém, Adolf. E desconfio que você não vai ter muito tempo pra isso...
     - Veja bem – Hitler caminha de um lado a outro do bunker, adotando um tom professoral – você sabia que a palavra “nazi” é uma abreviatura de "der Nationalsozialistische Deutsche Arbeiters Partei" — Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães? Nacionalistaaaaaaaaa... – ele repete a palavra com voz arrastada. O viajante do tempo esquerdista tupiniquim faz cara de deboche.
     - Isso não quer dizer NADA. Foi só um truque barato que você usou para... enganar alguém.
     - Enganar quem? O povo? Por que eu faria isso se depois adotei uma estratégia econômica socialista? Ou será que eu pretendia causar confusão só pra vocês, no futuro?...
     - Não seja engraçadinho, chucrute. Socialistas são os russos, e você odeia os russos.
     Hitler estufa o peito e adota um tom de discurso agressivo, como faz repetidamente no meme do filme:
     - O socialismo é uma antiga instituição ariana, germânica. Nossos ancestrais alemães mantinham certas terras em comum. Eles cultivavam a ideia do bem comum. O marxismo não tem o direito de se disfarçar de socialismo.
     - Mas vocês deixaram a maioria de suas indústrias em mãos privadas! Isso é puro capitalismo! Seu CAPITALISTA!
     Um sorriso diabólico surge nos cantos dos lábios hitlerianos. Ele se aproxima do esquerdista brazuca e segreda:
     - Essa “propriedade privada” sempre foi apenas nominal. O socialismo, ao contrário do marxismo, não repudia a propriedade privada. O socialismo não envolve negação da personalidade e, ao contrário do marxismo, é patriótico. Se você observar com atenção, era o governo alemão e não o proprietário privado nominal quem decidia o que deveria ser produzido, em qual quantidade, por quais métodos, e a quem seria distribuído, bem como quais preços seriam cobrados e quais salários seriam pagos, e quais dividendos ou outras rendas seria permitido ao proprietário privado nominal receber.
     - Anda não me convenceu – o viajante balança a cabeça, como se tentasse se livrar de um pensamento ruim. – Acho que é um extrema-direita infiltrado.
     - Se fosse assim, deveria ter deixado que o livre mercado tapasse o buraco de nossas contas. Você acha que infraestrutura e rearmamento para entrar numa guerra custa barato? Sabe quantos subsídios precisei distribuir? A única forma que tive para resolver isso foi a mais socialista possível: o controle rigoroso de preços e salários, que decretei em 1936. Foi a forma de tentar segurar a inflação e a escassez de insumos básicos...
     O outro o interrompe com um gesto de desdém.
     - Deixa disso, companheiro. Não sou economista para entender dessas coisas...
     - Sei. Mas mesmo assim está convencido de que eu sou um capitalista de extrema-direita...
     - Sei que a elite econômica enriqueceu debaixo de suas asas...
     - Quem se adequava às ordens do governo. Senão...
     Hitler passa o dedo indicador diante do pescoço rapidamente, da esquerda para a direita. Como se de repente se lembrasse de algo, arregalou os olhos e disse:
     - Aposto que, como socialista, você me diria que o bom socialismo exige o cumprimento das justas reivindicações das classes produtivas pelo Estado...
     - Isso! Justiça social!
     - Pois sempre foi minha bandeira, meu querido. Justiça social com base na raça e na solidariedade. Nós escolhemos nos chamar de Nacional Socialistas. Nós não somos internacionalistas. Nosso socialismo é nacional. Para nós, Estado e raça são uma coisa só!
     O viajante cobre os ouvidos com as duas mãos, como se sentisse dor.
     - Para com isso! É golpe! NÃO PASSARÃO!
     - Socialismo é a ciência de lidar com o bem comum. Comunismo não é socialismo. Marxismo não é socialismo. Os marxistas roubaram o termo e confundiram seu significado. Eu tirarei o socialismo dos socialistas.
     - Não vai fazer nada disso! Você é capitalista! COXINHA!
     - Reveja seus conceitos, amigo, você está enganado...
     - EXTREMA-DIREITA!
     O viajante apanha uma pistola Luger sobre a mesa e dispara um tiro certeiro na cabeça de Adolf Hitler. O barulho atrai Eva Braun, que adentra a sala assustada. Ela ainda pode ver o viajante com o braço em riste, o cano da pistola fumegante, e o Führer no chão com um buraco na cabeça.
     - Você o matou!
     O esquerdista examina a cena por um momento, franze a testa e estica um beiço.
     - Não matei nada. Foi suicídio.
     - Mas... mas...
     - FOI SUICÍDIO!
      


segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

LOBATO, A BOLA DA VEZ



Tempos atrás pipocou nas redes a notícia de que algum “luminar” do governo petista (de triste memória) sugeria que se retirassem as obras de Monteiro Lobato das grades escolares, citando especificamente “Caçadas de Pedrinho”, por serem, segundo eles, racistas. O exemplo contundente eram falas da boneca Emília, depreciativas como de costume, dirigidas a Tia Nastácia. Lembro que escrevi sobre isso na época. Defendia, como me parece o mais razoável para qualquer um que seja capaz de pensar um degrau acima do que é capaz um poodle treinado, que, em vez de banir as obras numa versão light da fogueirona de Bebelplatz, as obras fossem usadas por educadores dentro de seu contexto. Em vez de empurrar o constrangimento para baixo do tapete, explicar às crianças, de forma evidentemente acessível a sua capacidade de entendimento, que existem atitudes e palavras que não devem, ou mais ainda, não podem ser usadas por pessoas boas ou bem-intencionadas. Você pode ir do palavrão comum ao racismo num pulo, e ensinar em vez de alienar.
     Bem, naquele momento o miasma cultural que apelidamos de “lacrosfera” não ficou feliz. E não está feliz de novo agora, quando o assunto volta à baila. Neste ano, quando a obra de Monteiro Lobato cai em domínio público; muito se especula sobre a forma como as publicações de seus livros, inclusive do Sítio do Pica-Pau Amarelo, serão tratadas de agora em diante. E (claro!) começam a pipocar as citações de livros e cartas de Lobato evidenciando seu racismo. Diante dos argumentos de que tais textos precisam ser analisados em contexto, as respostas são, como sempre, histriônicas: “Não existe contexto para racismo! Eu cuspo na cara de Monteiro Lobato! Que seja banido!”
     Pois muito bem: antes de seguir na leitura deste texto, você precisa olhar para dentro de si e certificar-se de sua inclinação no que se refere ao ponto discutido: raciocinar e ajudar no crescimento de si mesmo e dos demais, ou fazer sucesso “causando” no clubinho lacrador. Se for este último caso, sugiro que pare de ler imediatamente. Como eu disse, a partir de agora vamos raciocinar, e isso pode acabar sendo excessivamente cansativo para você. Mas se suas intenções são razoáveis, se está disposto a ler e pensar, vamos adiante.
     A História só se aprende verdadeiramente dentro do contexto dos fatos. Por que Dom Pedro proferiu o Grito do Ipiranga? Estava entediado? Filho rebelde? Havia pressões de grupos políticos interessados na desvinculação com Portugal? Que interesses eram esses? Por que Dom Pedro cedeu a eles?
     Você pode simplesmente acreditar no fato em si de forma religiosa e repetir até a exaustão nas provas da escola, mas estará perdendo a oportunidade de ENTENDER. E não existe nada mais prazeroso, para quem aprende, do que se enxergar como participante da experiência humana. Entender o contexto dá à razão os elementos para elaborar juízos e adquirir o conhecimento real.
     Voltemos então ao racismo de Lobato. Primeira pergunta: ele era de fato racista? Seus textos indicam que sim. Aqui se fecha a porta do cubículo mental do lacrador, e se abre o campo de investigação do ser inteligente: por que ele era racista? Permitam-me citar alguns fatos e personagens históricos, acompanhados de datas entre parênteses, essenciais para comprovar a importante questão da CONTEMPORANEIDADE.
     “Eugenia” é um termo criado em 1883 por Francis Galton (1822-1911), significando "bem nascido". Galton, influenciado pela obra de seu primo Charles Darwin, definiu eugenia como "o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações, seja física ou mentalmente". Essa linha de pensamento encontrou enorme acolhida nos ambientes intelectuais da Europa e, a partir do século XX, também nos EUA. A eugenia, tal como foi apregoada nesses locais, defendia a “pureza das raças”, e sinalizava a miscigenação como fator de decadência das mesmas. Sabemos como o sequestro dessa miragem por ideologias totalitárias levaria posteriormente a tragédias, cujo exemplo mais conhecido é o nazismo nos anos 30 e 40, mas vamos nos ater a esse início, quando o ser humano ainda não vislumbrava as projeções terríveis que a eugenia poderia acarretar.  Na época, a população inglesa crescia nas classes pobres e diminuía nas classes mais ricas e cultas, e se temia uma "degeneração biológica". Portanto, a eugenia logo se transformou num movimento que angariou inúmeros adeptos entre a esmagadora maioria dos cientistas e principalmente entre a população em geral, na sua época áurea (1870-1933).
     O Brasil, na virada dos séculos XIX/XX, sofria uma enorme influência cultural da Europa, e começava a abrir seus olhos e ouvidos para os EUA, onde, como já dissemos, a eugenia também encontrou solo fértil. É, portanto, perfeitamente natural que nossa intelectualidade (como ainda acontece hoje, e acontecerá sempre) se esforçasse em absorver o que de mais “moderno” viesse do Velho Mundo. O Brasil foi o primeiro país da América do Sul a ter um movimento eugênico organizado. A Sociedade Eugênica de São Paulo foi criada em 1918. Acabou se infiltrando em políticas de Estado voltadas para a saúde pública. Medidas que visavam a impedir a miscigenação, higienismo e eugenismo, se confundiam nesse período da História do Brasil. Entre os intelectuais eugenistas brasileiros que mais se empenharam na organização e divulgação do movimento destacam-se: Belisário Penna (1868-1939), Edgar Roquette-Pinto (1884-1954), Monteiro Lobato (1882-1948), Octávio Domingues (1897-1972), Oliveira Viana (1883-1951) e Renato Kehl (1889-1974).
     Ora, o escritor é o ser que carrega o fardo de retratar em suas obras, de forma voluntária ou não, o pensamento do tempo em que vive. Na França o escritor Jules Verne, em “Cinco Semanas Num Balão” (1863), dava um flagrante exemplo de que, ainda antes do movimento eugenista organizado, o pudor no tratamento da questão racial não fazia parte da preocupação ambiente; em dado momento, quando os personagens retornam ao balão após uma caçada na África, avistam de longe sua aeronave cercada do que acreditam serem nativos negros. Chegando mais perto, percebem que, na verdade, trata-se de um bando de macacos.
      H. P. Lovecraft (1890 – 1937) foi outro autor muito criticado por suas colocações racistas, mas que parecem estar inseridas, em seus textos, com a naturalidade de quem está familiarizado com conceitos eugenistas, e se depara com eles o tempo todo em seu dia a dia. Na Argentina, em seu conto “Yzur”, o escritor Leopoldo Lugones (1874 – 1938) afirma de forma despreocupada que “a juventude, como acontece com os negros, é a fase mais intelectual do macaco”.
     É bem possível que você tenha engolido em seco ao ler essas citações. De fato, para os dias de hoje, não há dúvida de que sejam inconcebíveis. Mas é preciso admitir que considerar Monteiro Lobato “desprezível” por suas colocações eugenistas equivale a considerar desprezível grande parte da humanidade letrada daquela época. Equivale a ridicularizar um cidadão europeu do ano 1400 por ser terraplanista.
     Melhor seria, em vez de proferir impropérios e rolar pelo chão, se debatendo em uma birra ideológica, educar as novas gerações no sentido de que, felizmente, a humanidade EVOLUI. Ao jovem contemporâneo deveria ser dada a chance de entender que ser racista, nos dias de hoje, é pensar como um homem do século XIX. Para o adolescente existem poucas coisas mais ofensivas do que ser considerado “ultrapassado”; portanto, colocar a questão do racismo na obra de Lobato e de tantos outros em contexto abre as portas para uma formação saudável de conceitos, muito além da superficialidade do que é “socialmente aceitável”, mas que continuaria escondido em algum canto obscuro da psicologia que não teve a chance de jogar uma luz, corajosa e clara, sobre o assunto.
     Já retirando a questão de seu contexto, quem é que ganha? Ninguém, com certeza. Bem, há quem ACREDITE que ganha: o “lacrador”, esbravejando de cima de seu caixotinho de madeira feito palanque, naquele momento de glória em que crê estar se colocando como um ser superior a ninguém menos que Monteiro Lobato! É uma ingratidão abjeta, ainda mais por se travestir de “intelectualidade”, pois a maioria dos que hoje erguem seu punho furioso passou sua infância embevecido com as histórias de Emília, Narizinho e Pedrinho, filhos da vaca outrora sagrada, mas que hoje oferecem em sacrifício num holocausto efêmero e egoísta.
     Repetindo e sublinhando, uma das maiores tragédias da humanidade reside em não ser capaz de aprender com a própria História. Desgraçado, ainda mais, aquele que insiste em preencher essa lacuna com o foguetório barulhento, mas pouco efetivo, do catecismo ideológico.