domingo, 20 de setembro de 2015

MAURICIO DE SOUSA É STEAMPUNK!

     A descoberta de um mineral raríssimo, capaz de produzir, de forma barata, energia térmica e mecânica na forma de vapor, proporciona um salto tecnológico na vida de uma primitiva civilização, dando origem a maravilhas como as “naus voadoras”. Quando esse mineral começa a escassear, transforma-se em objeto de conflito entre duas facções daquela civilização, numa trama política repleta de ação e reviravoltas.
     Você deve concordar comigo que essa é uma base bem sugestiva para um bom romance steampunk, desses que proliferam e se alastram como nuvens aquecidas de vapor no meio contemporâneo da literatura fantástica nacional. O que você jamais adivinharia é que esse é o “plot” básico do álbum gráfico “Turma da Mata - Muralha”, da coleção “Graphic MSP” que a equipe de Mauricio de Sousa tem produzido com competência extraordinária, capitaneada pelo genial Sidney Gusman.


     Sim, aqueles animaizinhos antropomórficos que viviam na Mata do Chapadão, e que você lia nos gibis da Turma da Mônica, agora ganham uma versão revitalizada, num “antropomorfismo” e num texto direcionados a um público mais maduro, o que é a premissa básica da coleção “Graphic MSP”. Ah,e também é steampunk!
     O texto é de Artur Fujita, os desenhos do veteraníssimo Roger Cruz, e as cores de Davi Calil, um time afinadíssimo e escolhido a dedo para este que passa ser, para mim, o melhor de todos os álbuns já lançados da coleção, desbancando “Piteco”, do Shiko (bem, de todos os lançados só me falta adquirir – e ler – um álbum, então isso é bem significativo).
     Falando em “Piteco”, recordo nitidamente de um FIQ, em Belo Horizonte, quando o Sidney Gusman me mostrou os primeiros esboços gráficos do que viria a ser, no ano seguinte, a coleção MSP. Na época não era mais que um projeto, mas lembro-me bem de minha reação: “Sidão, isso VAI SER um sucesso! Isso SIM é renovação!” E a imagem que mais me marcou foi exatamente a da graphic do Piteco. Tempos depois, quando li o álbum pronto, ficou sendo meu preferido. Senti uma enorme gratidão ao Sidney e ao Mauricio; eu, que cresci aprendendo a ler nas páginas de Mônica e Cebolinha, e que acabei abandonando os títulos na medida em que envelheci, e passei a me interessar por outro patamar de livros e quadrinhos, senti a alegria de poder voltar àqueles velhos personagens, agora amadurecidos e adequados especialmente a mim e ao público que, como eu, cresceu, e sentia, em algum lugar lá no fundo, alguma saudade dos velhos amigos distantes.
     A essência da Turma da Mata está lá: a natureza doce e tímida do elefante verde Jotalhão (sem faltar a piadinha fazendo referência à massa de tomate...), a tensão romântica entre ele e Rita Najura, recriando a velhissíssima piada da formiguinha e do elefante que já divertia nas HQs infantis, o gênio tecnológico do Tarugo, que agora, em vez de um casco com teto solar e rodas, pilota um exoesqueleto de combate steam. O Coelho Caolho fica caolho de verdade, convertido num guerreiro veterano. Mas o legal, aparte da respeitosa manutenção dessas referências, foi que Fujita e Cruz foram capazes de dar uma densidade bem maior aos personagens, assim como à dinâmica entre eles.

     Esse álbum, nacional da gema, reproduziu dentro de mim o mesmo encanto que senti quando degustei a série (também de animais antropomórficos) “Blacksad”, dos espanhóis Juan Días Canales e Juanjo Guarnido, publicada pela francesa Dargaud, e que chegou a ter uns poucos álbuns lançados no Brasil.
     Amigo Sidão, esse merece sequência. Merece virar série regular. Não, merece virar animação. Sei que você é um cara que pensa grande. Pois fique aí, com mais essa minhoquinha dentro da mente. E obrigado, mais uma vez!





     

terça-feira, 18 de agosto de 2015

E AÍ, RECONHECEU?...

         




         E aí, reconheceu o cara? É, esse de camiseta branca, agachado, no canto direito da foto! Eu te digo quem ele é. Ou era...
     Ele trabalhava numa montadora de automóveis. Foi pego de surpresa na onda gigantesca, o tsunami de demissões que varreu o país na medida em que a crise (lembra da “marolinha”?...) explodiu. Poupança ele quase não tinha, e as migalhas que restavam a inflação comeu. Acabou o dinheiro, e não teve como pagar as prestações da casinha própria que ele comprava com tanto esforço e sacrifício. O carro e a geladeira, adquiridos em prestações a perder de vista, também lhe foram tomados, junto com sua dignidade.
     Sua esposa era diabética. Um dia, não encontrou a insulina de que precisava no posto de saúde. “Estava em falta”, lhe disseram, e o privilégio não era dela não, era no país todo. Como ele, demitido, perdeu o plano de saúde, no dia em que ela passou mal teve de recorrer a um posto do SUS. Foi atendida por um cubano, que lhe disseram que era médico, e que lhe prescreveu uma dose absurda de insulina, que ela comprou na farmácia com seus últimos trocados. A esposa morreu.
     Os dois filhos, com os cortes e atrasos no dinheiro do crédito educativo, tiveram de largar a escola. Não que perdessem grande coisa, já que o governo dessa Pátria Educadora cortou bilhões do orçamento para a educação, piorando a situação das escolas já sucateadas, ocupadas por professores mal preparados e pior remunerados. Os meninos estão em algum lugar por aí nas ruas, como ele, nas ruas deste país que – lhe disseram certa vez – “erradicou a miséria”.

     Nesta foto, ele está agradecendo às pessoas de amarelo. Ele sabe que elas saíram de suas casas aos milhares, sem ganhar por isso nem um churrasquinho, nem mesmo um pão com mortadela, para protestar por um país melhor, mais digno, para todos, inclusive para ele. Ele dá valor a esse ato, porque sabe que nem todo mundo é capaz disso. Tem aquelas pessoas que um dia votaram no partido que era “pelos pobres” e que hoje ocupa o governo federal. Ele sabe que aquelas pessoas se recusam a participar desse “golpe” das manifestações, como dizem, mas que não dispensam seu choppinho na balada dos finais de semana, enquanto ele está ali, sem ter o que comer. Por dentro, entretanto – ele pensa – sofrem de uma miséria moral tão grande quanto a que ele ostenta do lado de fora. Ou será maior? Que tragédia! Ele tem pena dessa gente, o cara de branco...

quarta-feira, 3 de junho de 2015

TRIBUTO AO FANDOM

 

Eis que, de tanto falar em algumas postagens da comunidade de ficção científica sobre o tal “fandom”, alguém acaba me perguntando que diabo de coisa é essa. De fato, que falta de atenção a minha, isso merece uma explicação. Fica, dessa forma, matando aqueles pobres dois coelhos com uma caixa d’água só, minha homenagem a ele:

     O fandom é uma velha caquética, retrógrada, moralista e mal-humorada. O fandom é o caldo onde se diluem as almas, restando o grumo sólido de sua parte mais dura. O fandom é a antítese. O fandom recua. O fandom wanna be. O fandom torce o nariz quando fala “fandom”. O fandom vende a mãe, mas não entrega. O fandom é a criatura de Frankenstein. É Dorian Gray. É Mister Hyde. É algo babando embaixo da cama. O fandom é o espaço escuro, onde brilham, vez por outra, esparsas estrelas. O fandom é o adubo fermentado e fétido de fezes onde, aqui e ali, florescem formosas flores. O fandom encarou a Medusa. O fandom fica espiando pela greta, de trás da porta. O fandom se desvanece em todas as direções quando acende a luz. O fandom é o populacho reunido em torno do cadafalso. O fandom ergue estátuas para falsos deuses. E depois as derruba. O fandom afaga e apedreja. O fandom absorve e cospe. O fandom pesa. O fandom é campeão moral. O fandom, quando ninguém está olhando, coloca meleca embaixo da cadeira. O fandom peida no elevador. O fandom são as águas que se abrem à passagem dos justos. O fandom sabe o mal que se esconde no coração dos homens. Ou acha que sabe. O fandom vai ao samba vestindo casemira inglesa. Toma chope em copo de uísque. Faz caixote para transportar banana de palanque. O fandom é uma rede social sem internet. O fandom é retrofuturista. O fandom é uma viúva inconsolável. O fandom é o mais desesperado dos náufragos. O fandom chora e não mama. O fandom quer ir pro céu, mas não quer morrer. O fandom se minioniza. O fandom mimetiza. O fandom é o bicho da goiaba. O fandom vê gente morta. O tempo todo. O fandom nunca esquece. O fandom sempre paga suas dívidas. O fandom atira primeiro. O fandom grita “lobo”. O fandom come a vovozinha. O fandom especula. O fandom se infiltra. O fandom come feijão com arroz como se fosse um príncipe. Vocês vão ter de engolir o fandom. O fandom odeia montanhas. Quando encontra uma, crava sua bandeira no topo. O fandom é um rabo de elefante achando que é cabeça de formiga. O fandom matou a família e foi ao cinema. O fandom fala de si na terceira pessoa. O fandom é paparazzo. Fandom não perdoa, mata. O fandom diz que, depois deles, não apareceu mais ninguém. O fandom é o tigre no bote salva-vidas. O fandom é a mancha de umidade no gesso do teto. O fandom dói quando você bebe gelado ou quente. O fandom cobra couvert. O fandom pediu Barrabás. No fandom, ninguém vai te ouvir gritar. O fandom é o sangue descendo pelo ralo. O fandom se lembra. O fandom está morto. Vida longa ao fandom!


quinta-feira, 30 de abril de 2015

BURROCRACIA


Antes de começar a ler, saiba que esta crônica é a transcrição quase literal de um fato verídico. Aconteceu comigo, no dia 23/4/15.

     Necessitando de um demonstrativo de uma de minhas fontes pagadoras para o Imposto de Renda, recorri ao site. Hoje em dia a maioria dessas coisas se resolve “on line”, viva a ciência. No caso, porém, o site me pedia um certo “código verificador” que eu não tinha. Conformado, fui pessoalmente ao departamento de RH do hospital.

     “Aqui não tem jeito”, me explicam. “O senhor vai ter de ir ao posto UAI na Praça Sete.”

     O “Posto UAI” é aquele lugar onde você tira qualquer documento, paga multa de trânsito, etc. Um “Asilo Arkham Para Criminosos Insanos” da burocracia. Estou no horário do almoço. Olho o relógio, emito um suspiro e vou.

     Passo pelo balcão de Informações. Sou orientado a seguir por um labirinto de corredores de deixar o Minotauro doido, e chego ao setor correto. O número da senha me desanima. Tem mais de vinte pessoas na minha frente. Mas são muitos atendentes, então a coisa anda melhor do que eu imaginava.

     Mas tem os “preferenciais”. Já que ninguém está ouvindo meus pensamentos, permito-me ser politicamente incorreto. Esse monte de velho passando na minha frente faria sentido numa fila, de pé, sofrimento justificado. Aqui está todo mundo sentado em cadeiras confortáveis. Tem ar condicionado. Estou no meu horário de almoço, que se escoa dolorosamente. Esses velhos vão sair daqui e voltar para casa. Ou entrar uma agência de banco para bater papo com o caixa e atrasar alguma outra fila. Ou jogar dominó na praça. Preferencial sou eu, caramba! Um velho passa exatamente na frente do meu número, e o cabelo dele é menos grisalho que o meu.

     Sou chamado ao balcão depois de uns quarenta minutos.

     “Um documento com foto, por favor”, pede a moça, laconicamente. Apresento minha Identidade Profissional. Ela olha e torce o nariz.

     “Tem algum mais recente?”

     “Moça, isso aí é minha identidade. Vale até eu morrer.” Mostro a ela onde está escrito: “Documento de identidade nos termos da Lei número 6.206/75”.

     “Certo, senhor, mas temos ordens de não aceitar documento com mais de dez anos de validade. O senhor não tem carteira de motorista?”

     Tenho, e mostro a ela, aliviado. Ela torce o nariz de novo.

     “Está vencida.”

     “Como assim, moça?”

     Ela me mostra. De fato, minha habilitação venceu em 22/02/2015, e eu nem vi.

     “Moça, tudo bem que está vencida, mas a outra não vence. É minha identidade...”

     “Infelizmente não posso aceitar, senhor.”

     Começo a ficar nervoso.

     “Tem alguém aqui com mais bom senso, com quem eu possa falar sobre isso?”

     “O senhor pode tentar na Coordenação, descendo o segundo lance de escadas, o balcão de vidro.”

     Vejo no olhar e no sorriso torto o que ela está me dizendo com seus pensamentos: “Você jamais vai sair daqui hoje com esse documento. Perdeu, playboy, cadê seu deus agora? Rá rá!”

     Assim mesmo vou à Coordenação, onde sou atendido por um gordinho simpático. Explico de novo o absurdo da situação:

     “Essa é minha identidade, de acordo com a...”

     “Lei número 6.206/75. Sei.”

     Desconfio que não estou fazendo uma reclamação original. Isso não é bom.

     “Infelizmente não podemos aceitar documentos antigos. O documento serve para que se reconheça o usuário pela foto...”

     Coloco meu documento, foto para a frente, do ladinho do meu rosto, junto ao vidro.

     “Olha a foto. Olha para mim. Sou eu, amigo.”

     Ele faz beiço. Franze a testa.

     “Hummm... Tem diferenças...”

     “Que diferenças, companheiro? Sou eu, claramente!”

    “Hummm... O cabelo está mais branco.”

     Lembro-me do velho de cabelos escuros que passou na minha frente lá atrás. Deve ser veterano nesse hospício. Velho maldito.

     “Ah, seu eu soubesse que teria de vir aqui, teria pintado os cabelos, mas foi uma coisa inesperada! Você tá de brincadeira, né? E se eu fosse mulher? Mulher pinta e corta cabelo todo mês!”

     “É, se fosse o caso, ia ter problema também. O senhor precisa entender que isso é para sua segurança, para que ninguém possa usar um documento seu para abrir uma conta no banco, ou...”

     “Rapaz, eu só quero um demonstrativo para o Imposto de Renda, só isso! É para pagar, não é para ganhar dinheiro nenhum! Vou te dar meu cartão. Sou oftalmologista, vou te passar uns óculos e você vai ver que este aqui sou eu!”

     “O senhor não tem outro documento?”

     Mostro a carteira de habilitação vencida.

     “Ah, esse é o senhor! Viu? Não é questão de óculos...”

     “A diferença é que nesta foto estou mais gordo. Só isso. Pode falar, não vou me ofender. Mais gordo. Esta serve, então?”

     “Infelizmente não. Como o senhor disse, está vencida.”

     “Por dois meses, companheiro! Escute... tem alguém mais razoável acima de você para conversar comigo?”

     “Não senhor. O plantão sou eu e meu colega.”

     Ele aponta por sobre o ombro, para o rapazinho cujo penteado, certamente, é para homenagear o Neymar. Duvido que seja o mesmo penteado da sua carteira de identidade. Resolvo jogar a batata quente para ele:

     “OK. Preciso desse documento para o IR. O que você me sugere?”

     “O senhor pode tirar uma nova via de sua carteira de identidade...”

    “Amigo, NÃO VAI DAR TEMPO! É para o fim deste mês.”

    “São cinco dias úteis para um documento novo. Se o senhor for lá hoje...”

     “Cara, vocês já comeram TODO o meu horário de almoço! Tenho de trabalhar! Não posso ir lá hoje! Veja só: vou fazer uma ocorrência policial. Se tiver problemas com a Receita Federal por causa dessa idiotice, vou explicar que vocês é que se recusaram a aceitar minha carteira de identidade...”

     Ele se embatuca um pouco.

     “Não, não, não precisa disso... Veja bem”, segreda ele, aproximando-se e falando baixo: “O senhor pode usar uma procuração.”

     “Como assim?”

     “O senhor deve ter um advogado, ou alguém que cuida de suas coisas. Faz uma procuração, reconhece firma no cartório, e a pessoa pode pegar seu papel usando os documentos dela. Estou te dando uma dica por fora da curva, entendeu?”

     Olho para ele, sério. Ele não está brincando. Incrível. Agradeço e vou embora.

     Chegando em casa, comento o caso e ninguém acredita. Mas minha cunhada, também médica, faz uma observação:

     “Peraí, mas um tempo atrás o CRM mudou o layout do documento, e trocou todas as carteiras. Tem de ter uma data de expedição nova!”

     Vou conferir, e é verdade. Do lado da data de expedição original tem uma NOVA data de expedição do documento: 26/7/2012! Não acredito que não me lembrei do detalhe. E que nenhum dos malditos daquela repartição viu isso.

     No dia seguinte, hora do almoço, retorno ao Posto UAI. Decidi não mencionar o que aconteceu na véspera, pronto para esfregar minha data de expedição na fuça do primeiro idiota que me questionar a respeito. Dessa vez cheguei mais cedo, e só havia uns dez na minha frente. Poucos velhos também. Promissor.

     A moça que me atende, uma diferente do dia anterior, me pede o documento com foto. Entrego a Identidade Profissional. Ela olha a foto, olha minha cara, e nem questiona. Vai lá na impressora e volta com meu documento para o Imposto de Renda, segundos depois.

     Limito-me a descrever os fatos, porque não sei o que mais comentar. Não sei o que dizer sobre essa sandice, além do que aconteceu. E fiz questão de destacar, no início, que foram fatos reais. Se não aviso, como escritor de ficção, vocês vão dizer que estou apelando na fantasia. Não estou.

sábado, 17 de janeiro de 2015

A VOLTA DO VINGADOR

    - Eu não fiz nada! – ela protesta.

     - Criatura do inferno! – acusa um terceiro pescador, que manda com toda força um soco no estômago da menina. Ela se dobra e cai de joelhos, tossindo e chorando. O pescador que desferiu o soco dá um safanão no barrete frígio, entranha os dedos nos cabelos da coitada e a ergue num arranco. Ela grita de medo e agonia.

     ‘Não vou me meter’, pensa o homem. ‘Não vou me meter. Não vou me meter. Não vou me meter... Ah, foda-se.’

     O homem se levanta e caminha a passos medidos até o sacerdote itinerante.

     - Preces a Plutão pelos mortos! Preces a Plutão pelos mortos!

     - Quero encomendar uma prece.

     - O nome do falecido, qual é?

     - Não é um só – o homem avalia os pescadores: o mais barbudo tem uma faca no cinto. Dois carregam varas compridas com um gancho de ferro na ponta. E há um último aparentemente desarmado, embora bem mais forte que os outros. – São quatro.

     - Que lástima... Quais os nomes?

     - Não sei.

     - Quando foi que eles morreram?

     - Em breve.

     O sacerdote, confuso, observa com mais atenção o possível cliente e se assusta com os olhos dele, castanhos e fugidios como os de uma ave de rapina.

     - Posso fazer desconto para grupos – ele diz, quase gaguejando.

     - Tanto faz – rebate o homem, enquanto se afasta. – Não sou eu quem vai pagar.

     O mais barbudo dos pescadores sacode a menina pelos cabelos e chuvisca cuspe no rosto dela enquanto vocifera:

     - Aberração pagã, você se entrega ao sacramento do batismo?

     - Entrego o quê?

     - Nega que Iesus Christus é ao mesmo tempo carne e deus?

     - Carne de quem?

     - Matem esse demônio – o mais barbudo joga a menina para os outros.

     - Soltem a moça.

     Os quatro pescadores e a menina olham com surpresa para o mendigo esfarrapado que se aproximou.

     - Isso não é da sua conta, irmão – diz o mais barbudo.

     - Não sou seu irmão - das dobras da toga, o homem saca o punhal. E diz, com voz cavernosa: - Veni cum papa!”

     E, assim, ele está de volta! Tive o prazer de conhecer Publius Desiderius Dolens em “O Centésimo em Roma”, romance histórico de Max Mallmann, lançado em 2010. Na época, fiquei devendo ao Max uma resenha da obra, mas o tempo passou, e resenha vocês sabem como é: ou você faz no calor da leitura, logo após seu final, ou não faz mais. Fiquei em falta. Minha chance de me redimir surge agora, quando Max lança “As Mil Mortes de César” (Ed. Rocco – 2014). O romance relata a continuação das peripécias de Dolens, romano nascido no favelão romano chamado Suburra, e que passa a vida tentando ascender socialmente ao posto de cavaleiro. Não dispondo, logicamente, da fortuna necessária para obter o posto, recorre às articulações políticas, e assim cai na verdadeira montanha-russa do poder que foi o Império Romano do século I.
 

     Como demonstrado no trecho acima, Dolens começa o segundo capítulo de sua saga como mendigo, tentando permanecer anônimo para proteger sua própria vida e a de seus entes queridos, após as desventuras do primeiro livro. Entretanto, não consegue fugir de sua própria natureza, voltando a mergulhar de cabeça na política romana, nessa época mergulhada numa sangrenta guerra civil.

     A vida desse notável romano, onde se misturam personagens históricos reais e fictícios, é relatada mais uma vez, no livro, por seu amigo e contraparte ética e moral, Quintus Trabellius Nepos, na obra (fictícia) “Vita Dolentis”. No cenário, acompanhe momentos que beiram o absurdo e que pontuam uma guerra civil, e mais um capítulo da ascensão de uma seita nova, obscura e cheia de ideias esquisitas, que começa a marcar presença nas ruas de Roma: os tais cristãos.

     Um império vasto como foi o romano não se mantém sem contar, além do formidável aparato militar, com uma igualmente formidável estrutura político-administrativa. É nesse cenário complexo e estruturado que penetra o alucinado Desiderius Dolens, como uma faca quente na manteiga, passando de mendigo a legionário a desertor a centurião a tribuno a senador numa velocidade tão espantosa que diverte e surpreende o leitor, tal a forma absurda como o destino reserva a Dolens momentos de glória seguidos imediatamente por momentos de desgraça absoluta, e vice-versa.

    Em minha mente, Dolens funciona como uma mistura de Conan, o Bárbaro, com Groo, o Errante. A raiva e a frustração que servem como força motriz de sua vida inteira provocam momentos de brutalidade e de humor que Max Mallmann administra com muita habilidade. A ambição política que o impulsiona contrasta de forma paradoxal com a absoluta desimportância que ele parece atribuir, em muitos momentos, aos bens materiais. Seu código moral muito pessoal é instigante, e as poucas demonstrações de sofrimento verdadeiro que ele deixa escapar, diante do infortúnio de seus (pouquíssimos) seres queridos, nos emociona, no contraste que apresentam com a forma sarcástica, fria e até sádica, em alguns momentos, com que ele encara a vida e escolhe suas ações.
 

     Desiderius Dolens é um dos maiores e melhores anti-herois da literatura contemporânea e, à parte da honrosa oportunidade de acompanhar sua saga, “As Mil Mortes de César” ainda é um livro recheado de humor inteligente e de referências à cultura pop e à chamada “alta literatura”, muitas das quais pude identificar imediatamente enquanto lia. Para quem não conseguir, Max nos brinda com um posfácio onde disseca a maioria dessas referências e dá uma boa amostra do seu processo criativo.

     Na forma despreocupada com que ignora os protocolos e rótulos envolvidos no jogo da política, fazendo a coisa bem ao seu jeito, Dolens carrega o leitor consigo numa jornada de purificação. Ao fim da leitura, você se sente vingado. Afinal de contas, num país onde nossa indignação atinge os píncaros diante da corrupção das instituições e dos desmandos do poder, alimentados pela ganância e pelo desrespeito ao cidadão comum, quem de nós não sonharia em ver um desses bandidos mensaleiros chegando em casa, recém liberto da cadeia pelas brechas obscenas deixadas pela Justiça, e, ao entrar em sua sala luxuosa imersa na penumbra, ouvindo na escuridão uma voz cavernosa que lhe diz: “Veni cum papa”?

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

O RACISMO, DOS PRIMEIROS HOMENS A LOBATO


Uma discussão acerca do racismo na obra de Monteiro Lobato e sua adequação para o uso em escolas infantis, ocorrido recentemente numa comunidade do Facebook, com direito a trombetadas, xiliquitos nas coxias, ranger de dentes e ataques apopléticos, entremeados por argumentações mais ponderadas (e outras nem tanto) como pano de fundo, motivam uma reflexão mais profunda sobre o tema, agora em ambiente sereno, familiar e controlado, sem “estática” ou truculência desnecessárias, como merece qualquer reflexão séria.

     Qualquer assunto pode ser mais bem compreendido quanto mais próximo conseguimos chegar de sua origem. Cabe aqui perguntar: qual a origem do racismo? Qual o sentido (se é que existe, para o bem ou para o mal) de sua existência?

     Iniciemos esta longa viagem com uma afirmação categórica: tudo aquilo que existe, e que não é parte da natureza, nasce da mente do homem. A cadeira, sofá ou o piso onde você está sentado, o teto sob o qual você se encontra, tudo isso um dia foi uma ideia, um pensamento, na mente de alguém. A energia elétrica que alimenta seu computador, essa energia domada que aquece e ilumina sua casa e suas ruas, vem da mente de um homem que decodificou o conhecimento da força contida na natureza, elaborando formas de usá-la para conforto próprio. A roupa que você veste, pois dificilmente estará lendo estas linhas pelado, vem da mente de um homem que, lá na pré-história, viu-se na necessidade de criar meios de se proteger da oscilação do clima, evoluiu com a humanidade a partir da noção, surgida na mente, do pudor, e acabou se esparramando em ciclos de estética e, diriam alguns, frivolidade, quando a mente de alguém concebeu a moda. Portanto, a menos que você defenda a ideia estapafúrdia de que o racismo é um processo natural, ele provém da mente. Nesse caso, com qual finalidade (consciente ou não)?

     O racismo nada mais é do que uma das infinitas formas inventadas pelo ser humano para atender a um impulso instintivo, que o acompanha desde os albores da espécie até, lamento o pessimismo, seus últimos dias na Terra: a ânsia de dominar, de submeter seu semelhante.

     Antes dele, porém, é necessário falar de outro costumezinho feio inventado pela humanidade: a escravidão.

     O Código de Hamurabi, conjunto de leis escritas da civilização babilônica, já apresentava itens regulamentando a relação entre os escravos e seus senhores. No princípio, a obtenção de seres submissos para desempenho das mais diversas tarefas, por necessidade ou conveniência econômica e social, eram obtidos através de guerras contra povos de origem estrangeira. Assim foi com os egípcios, os gregos e os romanos. Com o tempo e a evolução cultural, porém, encontramos que, principalmente a partir da Grécia, as noções de ética começam a exigir, do ser humano, justificativas para seus atos perante a sociedade. Nesse momento, para justificar a continuidade da política de submissão, o racismo, que já existia como focos esparsos de “estranhamento” e incompreensão frente às diferenças, ganha força como instrumento político. Em Esparta, para citar um exemplo, os escravos eram propriedade do Estado. O grande dilema: com que justificativa escravizar outro ser humano, partindo do pressuposto de que ele é igual a você? Onde reside seu direito? O racismo resolve isso com facilidade, e seu postulado básico é: “NÓS somos diferentes, e EU sou superior a VOCÊ e, portanto, VOCÊ tem de se submeter a MIM”. De todas as formas como a discriminação se manifesta, como a cultural, a religiosa ou a sexual, algumas controversas e sutis, a diferença da cor da pele é a mais evidente, a mais inquestionável.

     Enquanto que, na colonização do Oriente, a diferença racial do conquistador branco esbarrou na dificuldade surpreendente de uma cultura já sólida e enraizada (leia-se, capaz de se defender), tal aconteceu de forma mais tênue na conquista da raça vermelha na América Central, e menos ainda na escravização da raça negra, na África. Mesmo assim, as dificuldades naturais para a submissão do índio acabou resvalando para o genocídio, enquanto a docilidade do negro o tornou o “escravo ideal”, nas Américas de Norte a Sul.
 

     A noção cultural da superioridade da raça branca se espalha sem restrições significativas, como seria de se esperar, no berço cultural predominante no mundo, o europeu. Tal fato se reflete na literatura, para que não percamos de todo o foco, como se pode constatar facilmente lendo grande parte dos principais autores dos séculos XVIII e XIX. Neste último, a explosão da ciência como fator de progresso da sociedade dá margem, apesar de tantas benesses, ao surgimento de “dogmas científicos”, entre eles o de que a “raça ariana” seria naturalmente superior à “mongoloide” e à “negroide”.  Em 1883, Francis Galton cunha o termo “eugenia”, ou "o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações, seja física ou mentalmente". Voltando à literatura, citemos, como exemplo, o tão cultuado e respeitado Jules Verne. Na obra “Cinco Semanas num Balão”, por exemplo, há um trecho onde os personagens comentam que é melhor negociar com os árabes do que com os negros, porque são “menos selvagens”. Em outro, num episódio onde o balão dos aventureiros se vê cercado por estranhos “agressores” no coração da África, segue-se o diálogo:

“- Nós julgávamos que te haviam cercado os indígenas.

- Felizmente não passavam de macacos – respondeu o doutor.

- A diferença de longe não é grande, caro Samuel.

- Nem mesmo de perto – replicou Joe.”

 

     Diante do exposto até aqui, fica fácil compreender por que esse tipo de ocorrência, na literatura, não causava nenhum tipo de comoção ou constrangimento significativo. Simplesmente não existia razão histórica para tal questionamento!

     Ainda no século XIX, mas agora nos Estados Unidos da América, o racismo como instrumento de submissão ganha contornos mais definidos (e trágicos) através do que passou à História com o nome de “Destino Manifesto”. A expressão foi cunhada pelo jornalista John O’Sullivan, para sua revista Democratic Review, nos seguintes termos:

 

"Nosso destino manifesto, atribuído pela Providência Divina, para cobrir o continente para o livre desenvolvimento de nossa raça, que se multiplica aos milhões anualmente."

 

     Tornou-se política oficial. Em 1857, o presidente James Buchanan afirmou, em seu discurso de posse:

 

"A expansão dos Estados Unidos sobre o continente americano, desde o Ártico até a América do Sul, é o destino de nossa raça (...) e nada pode detê-la".

 

     De política de Estado, o Destino Manifesto tornou-se ideologia, que se realimentou gerando uma ideia fixa da pré-destinação dos norte-americanos da época sobre os outros povos americanos descendentes de indígenas, hispânicos, e escravos negros. Na conquista do Oeste, levou ao genocídio dos povos indígenas. É sugestiva a afirmação, sobre esse mister, de Benjamim Franklin:

 

"Se faz parte dos desígnios da Providência extirpar esses selvagens para abrir espaço aos cultivadores da terra, parece-me oportuno que o rum seja o instrumento apropriado. Ele já aniquilou todas as tribos que antes habitavam a costa."

 

     Observem no “pano de fundo”, sempre, o propósito da dominação. Sobre esse triste período histórico, sugiro a leitura do livro “Enterrem Meu Coração na Curva do Rio”, de Dee Brown, um dos poucos livros que já me fizeram chorar (literalmente). Não é difícil enxergar como essa ideologia dita as bases da política internacional estadunidense até os dias de hoje.
 

     É nesse pé que nossa viagem histórica chega ao século XX, e ao Brasil. Imagine o entusiasmo com que setores da intelectualidade brasileira abraçaram a eugenia, tão “badalada” em países como Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha e França. Para as elites da América Latina, a eugenia era um símbolo de modernidade, uma ferramenta científica capaz de colocar nossos países no trilho do progresso. As primeiras publicações sobre eugenia no Brasil apareceram por aqui em meados dos anos 1910, a partir de artigos publicados na imprensa do centro do país e em teses acadêmicas, especialmente em Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia. Entre os temas mais tratados pelos eugenistas brasileiros estavam a educação higiênica e sanitária, a seleção de  imigrantes, a educação sexual, o controle matrimonial e da reprodução humana, incluindo polêmicas sobre esterilização eugênica, e debates em torno da miscigenação, branqueamento e a regeneração racial, questões que se estenderam até além da década de 30. Um meio de cultura ideal, como facilmente se perceberá, para o crescimento do fungo do racismo, neste país que se destacou pela colonização com a participação marcante da escravidão negra. 

     É compreensível que nossa literatura refletisse, entre outros tantos movimentos de pensamentos, também a corrente eugênica. Na Argentina, é interessante citar a obra de Leopoldo Lugones (1874 - 1938), autor que recheava seus contos de ideias extraídas de publicações acadêmicas dos mais diversos campos da ciência.  Em seu conto “Yzur” (1906), onde o narrador descreve seus esforços no sentido de fazer um chimpanzé falar, entre as razões que defende para o sucesso da experiência, em dado momento ele afirma: “meu espécime era jovem, e todos sabem que a juventude é a fase mais intelectual do macaco, assim como acontece no negro.”
 

    E chegamos enfim ao escritor brasileiro, contemporâneo de Lugones e da “febre eugênica” no nosso país, Monteiro Lobato (1882 – 1948). Diante de todo o exposto, penso que agora estejamos em condições de apreciar alguns argumentos, que se destacaram na fervente discussão mencionada no longínquo iníco deste artigo.

“Monteiro Lobato era racista.”

     Sim, ele era. Não só deixa isso claro em vários textos, inclusive correspondências pessoais, como era eugenista (e já vimos como os dois engendros psicológicos andam de mãos dadas), bastante influenciado pela obra do psicólogo e físico amador francês Gustave Le Bon, cujos livros L’Homme et les Sociètes, Evolução da Força e Evolução da Matéria, defendendo ideias de superioridade racial, degeneração e eugenia, Lobato conhecia de longa data. Era, pois, ao contrário do que defendem alguns desinformados na famigerada discussão, um homem do seu tempo, representante típico não apenas de uma fatia da sociedade brasileira da época, mas de sua elite. Um homem que pensava como grande número de seus contemporâneos, embora apenas seu nome (e o de uns poucos outros) tenha se destacado para a posteridade, pelo simples fato dele ter deixado como legado, diferentemente da maioria, uma obra literária, onde naturalmente se refletem suas ideias. Longe de mim, com essas afirmações, justificar Lobato, mas simplesmente explicar, e essa contextualização nos será importante mais adiante.
 

     O livro “O Presidente Negro”, semente da celeuma, também chamado “O Choque das Raças”, foi escrito nos moldes das obras de crítica social do britânico H. G. Wells. Produzido em 1926 (e repare como, neste artigo, datas são relevantes), tendo como finalidade o mercado americano, país para onde Lobato se transferiria como adido comercial no consulado brasileiro em New York. Numa carta ao amigo Godofredo Rangel, assim Lobato descreve seu novo livro:

“Um romance americano, isto é, editável nos Estados Unidos(...). Meio à Wells, com visão do futuro. O clou será o choque da raça negra com a branca, quando a primeira, cujo índice de proliferação é maior, alcançar a raça branca e batê-la nas urnas, elegendo um presidente negro! Acontecem coisas tremendas, mas vence por fim a inteligência do branco".
 

     Não se trata, pois, de livro para crianças, como sua obra mais conhecida, “O Sítio do Pica-pau Amarelo”, publicado entre os anos de 1920 e 1947 (datas, datas...). Não fosse “O Presidente Negro”, possivelmente Lobato não se tornasse, no século XXI, vítima de um verdadeiro patrulhamento ideológico, dando aqui uma conotação literal á expressão, um pouco distinta da acepção original cunhada especificamente para a ação política esquerdista nos anos 70. “Patrulhamento ideológico” seria, no caso, uma ação coordenada de grupos específicos no sentido de denunciar, desmoralizar e abafar correntes de pensamento distintas daquelas defendidas ou valorizadas por esses mesmos grupos.

     Mas eis que Nilma Gomes, nova ministra do governo de Dilma Rousseff para a pasta de ‘Políticas de Promoção da Igualdade Racial’, pediu que o livro ‘Caçadas de Pedrinho’, do escritor Monteiro Lobato (publicado em 1933), seja banido do Programa Nacional Biblioteca na Escola, por entender que a obra contém conteúdo racista. A justificativa seria a forma estereotipada como é apresentada a personagem Tia Nastácia, e a maneira desrespeitosa (e racista) com que Emília se refere a ela. Recentemente, a mesma obra sofreu acusações do Instituto de Advocacia Racial, que entrou com um mandato de segurança junto ao Supremo Tribunal Federal pedindo a retirada do livro da lista de leitura obrigatória em escolas públicas. O caso foi indeferido pelo Ministro Luiz Fux.
 

     A intenção explícita de limitar o contato do leitor com a obra consiste, sim, em patrulhamento ideológico. Mais argumentos curiosos:

“Uma vez que há tantos outros autores bons tratando de temas relacionados ao racismo, por que Monteiro Lobato?”

     Seria o caso de inverter a questão: se resultados tão bons têm sido obtidos com o Sítio do Pica-pau Amarelo na formação de leitores, junto às crianças, por que não (entre os demais) Monteiro Lobato?

“Ah, porque crianças negras se sentem mal ao tomarem contato com as falas da Emília. Crianças podem receber a semente do racismo ao tomarem contato com esse exemplo.”

    Não seria isso uma falha na maneira com que o educador encara essa questão e conduz o processo de leitura? Não poderia ser diferente?

“O sistema educacional brasileiro é deficiente. Os professores não estão preparados para tratar dessa questão adequadamente. Isso seria uma utopia.”

     Falácia. Eu estudei numa escola, há quase 40 anos, onde a criança é ensinada a aprender PENSANDO. Meus filhos estudam nessa escola hoje. O fato de isso ser real descaracteriza a “utopia”.

“Mas seu caso é uma minoria! No geral é diferente.”

     De fato. Mas essa realidade transforma a ”utopia” num problema real, mas que pode ser resolvido. Com mais dificuldade, com muito trabalho, mas possível. É curioso que esses pessimistas não defendam que a sociedade livre do racismo seja uma “utopia”, o que torna o argumento uma solução para quando não existe nenhum argumento melhor. Um programa público de preparo dos docentes especificamente para tratar dessa questão; uma leitura orientada de “Caçadas de Pedrinho”, fazendo perguntas que levem o leitor a raciocinar, apontando particularidades e dirigindo o debate com tato para o tema desejado; um trabalho, como dever de casa, sobre “racismo”, com discussão posterior. Isso é tão irreal assim?

     Não subestime a criança: ela não é burra. É preciso lembrar que a criança em idade escolar está começando a usar sua razão. Começa a distinguir (e rotular) o certo e o errado, o bem e o mal. E começa a ter de posicionar suas opções de acordo com essas compreensões. A idade escolar é, pois, a idade mais propícia à formação de conceitos. Não seria uma excelente oportunidade contar com uma obra acessível e palatável para sua faixa etária, como “O Sítio do Pica-pau Amarelo”, para ajudar na docência, na formação de conceitos saudáveis sobre as diferenças raciais? Depois, numa idade maior, aproveitando o testemunho vivo da mentalidade de uma época histórica proporcionado por Lobato, promover uma contextualização da obra, mostrando que a humanidade evoluiu, mas que cabe às novas gerações melhorar ainda mais, não repetindo o que não é mais aceitável e superando a própria conduta quanto ao tema? Por que o ser humano insiste na solução menos trabalhosa, porém menos eficaz: varrer a História para baixo do tapete, pasteurizar, maquiar a visão do passado, mutilar os fatos e apagar conquistas, tirando aos novos a oportunidade de APRENDER com os erros e acertos do passado? Sim, é mais trabalhoso. Mais fácil é se entregar ao coitadismo, e partir para o revide! Lanço minha pergunta aos ativistas da causa racial: com essa alimentação contínua do círculo vicioso dos ódios e da acentuação das diferenças, como esperam que a questão do racismo se resolva definitivamente? Seria meramente razoável imaginar que é possível a vitória de uma das partes, seja ela qual for, numa guerra cuja verdadeira motivação, a submissão do outro, permanece oculta? Aquele que sente ou sentiu na carne a discriminação racial, antes de se opor a um trabalho consciente de unificação, deveria consultar intimamente o próprio coração e responder à pergunta: no que se refere ao racismo, o que EU quero DE VERDADE? O doce, embriagante sabor da vingança, ou que a geração de meus filhos e netos não sofra mais o que sofri? Está aí a diferença entre promover esforços conscientes de coexistência interracial sadia OU fomentar a luta de classes (rico X pobre, médico X paciente, esquerda X direita, patrão X empregado, branco X negro), instrumento tão do agrado da ideologia política que ocupa momentaneamente o poder neste país, cuja ministra pretende simplesmente abortar a oportunidade do aprendizado sobre tema tão fundamental. Qualquer tentativa de solucionar uma questão tão terrível e tão universal há de fracassar enquanto os envolvidos se deixarem seduzir e reduzirem o debate ao foro pessoal relativo ao problema, por mais dolorosa que seja essa questão. 

     Cabe analisar mais um argumento estapafúrdio que meus olhos doloridos são obrigados a ler nas discussões:

“Um branco não tem como opinar com suficiência sobre esse assunto, porque não sentiu na carne o que o negro sofre.”

     Repare que é um argumento, além de tudo, racista: a incapacidade de uma pessoa de deliberar sobre uma questão determinada, por causa da sua cor de pele. Antes que voltem, entre dentes rangentes, a me acusar de “utopista”, permitam-me lembrar mais um caso prático da vida real. Lembro-me de certo Nelson Mandela, ex-mártir do apartheid; chegando á presidência de seu país, em vez de inverter o vetor do ódio (como seria de se esperar), optou por encontrar formas de coexistência mútua,  inteligente, harmônica, usando inclusive, para isso, o esporte (que tal usar a literatura?). Você pode ver essa história no filma “Invictus”, por exemplo, estrelado por Morgan Freeman, mas não convide um ativista do coitadismo racial para o programa. Eles, curiosamente, evitam introduzir Mandela nas discussões. Chego a pensar se alguns ainda o consideram negro...

     Tenho a honra de ser autor e um dos organizadores da coleção de livros infantis “Nossa Turma”. No volume 2 da coleção, intitulado “Somos Todos Irmãos” (http://www.infancia.com.br/somos), que trata justamente das diferenças raciais, o autor Guilherme Cavalieri escreve:

“- As diferenças são culturais, mas as semelhanças são universais. Nós somos muito semelhantes a todas as pessoas de nosso planeta. Quer ver? Vou dar a você algo que um chinesinho também gosta de receber do pai dele.

- O que é, hein, papai? – Heitor indagou, vivamente interessado.

Com um jeito muito carinhoso, seu Jéferson abriu os braços, aproximou-se do filho e lhe deu um abraço. Heitor compreendeu muito bem e disse:

- Já sei o que é! O amor do pai pelo filho faz parte da vida de todas as pessoas do mundo, mesmo se ela for da China ou de um lugar muito diferente!”

     Eis uma forma de ajudar a criar uma humanidade melhor, acentuando as semelhanças em vez de agudizar as diferenças. Aliar a isso a compreensão de quanto mal já se fez em nome das diferenças, em vez de pretender apagar essa realidade da História, pode proporcionar uma estratégia efetiva no combate definitivo ao racismo. Um detalhe a mais, que pode ser relevante para alguém: Guilherme, o autor do livro infantil mencionado, é branco.
 

     Ainda sobre a questão de Lobato, a escritora Lya Luft revela ter sofrido na carne o racismo (!!!) na infância, cercada por outras crianças que cantavam: “alemão batata come queijo com barata”. Doeu, ela diz. No final de seu artigo, sobre a possibilidade da proibição de Lobato nas escolas, ela exorta:

“O politicamente correto pode ser perigoso e hipócrita. Os meus olhos azuis, como os de um de meus filhos, e os olhos escuros dos outros dois, como os oblíquos dos japoneses e os olhos pretos dos árabes, são todos da família humana, muito maior e mais importante do que suas divisões raciais.

Nem comecem a dar ouvidos a essas buscas mesquinhas por culpados a ser jogados na fogueira: livros queimados foram um dos índices sinistros — ao qual nem todos deram a devida importância — da loucura nazista. Muita tragédia começa parecendo natural e desimportante: no início, achava-se Hitler um palhaço frustrado. Deu no que deu, e manchará a humanidade pelos tempos sem fim.

Que não comece entre nós, banindo um livro infantil de Monteiro Lobato, o mais brasileiro dos nossos escritores: será uma onda do mal, uma nova caça às bruxas, marca de vergonha para nós. Não combina conosco. Não combina com um dos lugares nesta conflitada e complicada Terra onde as etnias e culturas ainda convivem melhor, apesar dos problemas — devidos em geral à desinformação e à imaturidade: o Brasil.”

     Amém, Lya Luft.

Enfim, como sobremesa, o link para o quadro que um programa da MTV fez acerca dessa questão. Enjoy:  https://www.youtube.com/watch?v=Z6FN_yrQV04