Há trinta anos,
aproximadamente, enquanto eu frequentava os bancos da escola de medicina e
começava a enxergar, estupefato, a decadência vertiginosa da medicina pública brasileira,
imaginava o seguinte: “isso não pode continuar nesse ritmo por muito tempo,
alguma coisa vai explodir. O povo vai para as ruas e, daqui a trinta anos,
quando eu for um profissional estabelecido no mercado, a coisa vai estar muito
melhor que hoje.”
Hoje, num dia de maio, trinta anos depois,
estou chegando do inferno. Acabo de receber minha “dose de realidade”, aquela
que qualquer um de nós está fadado a receber, uma, duas ou três vezes, em algum
momento da vida. Eu e minha esposa passamos 48h dentro de um pronto-socorro de
urgência, com nosso filho de um mês de idade, acometido por uma dessas doenças
respiratórias que atacam principalmente crianças quando o clima esfria. Se você
entende o mínimo de medicina, sabe que um pronto-socorro não é lugar para
qualquer paciente permanecer por 48h. Acontece que não existem, praticamente,
leitos para internação de crianças em Belo Horizonte. Não só crianças, na
verdade, pois passei por drama semelhante faz poucos anos com meu pai, em outro
hospital. Nos últimos onze anos a taxa de leitos hospitalares caiu em cerca de
15% no Brasil, enquanto a população e a morbidade crescem. Nos últimos cinco anos,
284 hospitais privados, que atendiam SUS, foram fechados, a maioria no interior
do país, por falta de condições econômicas para continuarem funcionando sem a
correção da tabela paga. Se em BH está assim, como em SP e RJ (capitais),
imagine como está em Santo Antão do Pé Vermelho.
Meu filho de um mês de idade passou 48h
num salão gelado, num box separado dos demais por cortinas, como você vê na
foto acima. Passei as duas madrugadas sentado na única cadeira disponível, durante
um bom tempo embalando meu bebê nos braços, enquanto minha esposa tentava garimpar
algumas horas de sono na cama do box. O tempo todo entravam crianças sofrendo,
durante a noite inteira, a maioria absoluta sofrendo com doenças respiratórias,
como asma e bronquite. A maioria não dispunha sequer de um box com cortinas
como o nosso, e dormia como podia nas cadeiras das salas de espera. Vi e ouvi coisas de partir o coração, mas que fogem ao objetivo deste artigo.
Nossa maior preocupação era o fato de
nosso bebê ser tão pequeno, ficando exposto a todo tipo de gente doente que por
ali passasse. Minha esposa insistia para que eu fosse até a equipe de médicos e
enfermeiros de plantão, insistir na internação que, obviamente, foi pedida no
primeiro momento. Eu ia, constrangido, porque já sabia o resultado: um sorriso
triste de “estou de mãos atadas”, um olhar baixo de “você sabe que não posso
fazer mais que isso”. Um PS no Brasil é um dique, que represa o sofrimento e a
aflição humana, e o médico plantonista é quem segura essa represa nas costas,
porque simplesmente não tem como fazê-la escoar. Trabalho em um, sei como é.
Mas hoje não, hoje estou aqui falando a vocês como paciente.
Na segunda noite a plantonista, por
camaradagem, nos arranjou um isolado para diminuir o risco a que o bebê estava exposto. Foi a
salvação, porque a segunda noite foi infernal: uma criança grave, que foi
entubada e deixada ali mesmo, por falta de vagas no CTI. Luzes acesas,
monitores piscando, crianças chorando, macas entrando e saindo sem descanso,
até o dia amanhecer.
Eu, olhando pela janelinha do isolado, só
sentia crescer minha indignação. A coisa chegou a um ponto muito mais baixo do
que eu imaginava trinta anos atrás. Hoje não importa se você paga convênio ou é
paciente do SUS. Não há leitos. Não há estrutura. Nossas crianças, nossos velhos e nossos
fracos, estão correndo um elevadíssimo risco de morte por desassistência. Há
trinta anos um governo que deixasse a saúde chegar a esse ponto seria um
governo omisso, relapso. Mas nos dias de hoje, um governo que enxerga esse
panorama e cria um programa eleitoreiro e de lavagem de dinheiro como o “Mais
Médicos”, que NADA tem a ver com saúde, mas sim cria uma cortina de fumaça,
como se “a coisa estivesse melhorando”, enquanto ela, na verdade, vai mais para
o buraco, é um governo criminoso. Assassino. Se o governo dispõe de bilhões de
reais para mandar a Cuba em troca de merreca, na melhor tradição petista de construir
cafua e rotular como “palácio”, poderia facilmente, se houvesse vontade
política, ter resolvido mais de 75% do problema real com esse mesmo dinheiro,
focando em dois pilares básicos: infraestrutura e carreira de estado para o
profissional médico, o que asseguraria atendimento em grande parte das áreas
remotas do país. Não se pode alegar ignorância. Uma comissão de médicos
funciona como consultora do governo federal para esses assuntos. Adib Jatene,
que faz parte dessa comissão, disse na TV com todas as letras que a comissão em
nenhum momento foi consultada na questão do “Mais Médicos”, que foi uma medida
absolutamente política. Mas o PT, seguindo a tradição de um dos pilares
estratégicos de sua ideologia, abriu mais um ramo da “luta de classes” que
fomenta com paixão, na forma do "paciente X médico", ao depositar sobre a classe
médica a culpa pelo caos da saúde brasileira.
E aqui estou eu, médico, “corporativista”,
“máfia de branco”, temendo pela vida do meu bebê graças a uma “política de
saúde” inexistente, que não acena com melhora alguma nem a longo prazo, com a
bênção de uma boa parte da população. Você, que me conhece ou me acompanha nas
redes sociais, pode observar que jamais me viu discutir política na rede ANTES
do “Mais Médicos”. Hoje eu o faço quase diariamente, com intensidade, porque
esse crime cometido por pessoas sem caráter vai contra todo o idealismo que me
levou à profissão, vai contra tudo que anseio para a saúde do meu povo, não por
“corporativismo”, mas simplesmente pelo conhecimento que tenho, por viver
diariamente contemplando a máquina por dentro. Eu e a maior parte dos 400.000
colegas de profissão espalhados pelo país, sacrificando-se dia a dia com aquilo
que temos à mão, movidos pela esperança quase convertida em fé cega, em algo
que nem de longe se prenuncia. Falo nisso todos os dias porque sinto que, ao me
omitir, por comodismo ou covardia, perco o direito de me indignar depois.
Mas hoje não, hoje sou paciente. Acabo de
chegar em casa e, agradeço a Deus, com minha família íntegra. Sei que aquele PS
está lotado de novo esta noite. Como estará amanhã, e depois de amanhã, de
gente aflita, desesperada, sentindo-se num beco quase sem saída. O beco, lamento
dizer, é MESMO quase sem saída, e tende a piorar.
Finalmente, vai minha mensagem a você, petista,
petistoide ou simpatizante enrustido: você, que aplaude a “política de saúde”
desse bando que ocupa as cadeiras de comando deste país, um dia vai passar pelo
que passei hoje: sua “dose de realidade”. Note que não é uma “praga” que lhe
rogo, mas uma constatação de um fato muito provável, previsto por alguém de
dentro da máquina. Um dia você vai estar lá, de mãos atadas, diante do
sofrimento de um pai, irmão ou filho. E naquele momento em que seu pequeno, incapaz
de compreender a razão do próprio sofrimento, com aquele tubo de plástico
enfiado no nariz para ajudá-lo no esforço desse ato tão rotineiro e subestimado
que é respirar, quando ele olhar por cima da máscara da nebulização e seus olhos
se encontrarem com os seus, e você conseguir ler neles claramente um pedido de
socorro silencioso, mudo, um “me ajude” que você, com a alma despencando num
abismo de dor, compreender que não é capaz de aliviar... Nesse momento, tenha
certeza, você não vai se lembrar de seus “heróis”: Lula. Dilma. Padilha. Os “presos
políticos” Dirceu e Genoíno; nesse momento terrível, “companheiro”, você vai se
lembrar é de MIM.