Atendendo
a um desejo mais ou menos antigo, iniciei hoje, no Dia do Escritor, a leitura
de “A Dança da Morte” (The Stand), do
mestre Stephen King. Este romance, um dos seus mais celebrados de todos os
tempos dentro da obra do autor, tem uma peculiaridade: publicado originalmente
em 1978, teve uma nova versão lançada em 1990. Explico: o calhamaço original
estourou o orçamento do departamento de contabilidade da editora de King, e ele
teve de cortar quatrocentas páginas do manuscrito original, para manter o preço
de capa nos limites do que a editora considerava realizável. Na versão de 1990,
que sai no Brasil pela editora “Suma de Letras”, temos a versão integral da
história, com alguns cortes ainda, é verdade, mas estes realizados pelo próprio
autor, exercendo seu sagrado direito.
A obra se divide em três partes: na
primeira, um erro por uma fração de segundo, cometido pelo Departamento de
Defesa dos EUA, libera na atmosfera terrestre um vírus superultramegahipermortal,
que rapidamente extermina 99% da população do mundo. Na segunda parte
acompanhamos a saga dos 1% sobreviventes, que se dividem em dois grupos: um
organizado numa sociedade pacífica, que procura preservar as bases da civilização,
e outro organizado em torno de um tirano sem o menor escrúpulo quanto à volta à
barbárie. A terceira parte mostrará o confronto final entre as duas forças em
oposição. Se você considerar o habitual estilo “recheado” de King, estamos,
então, diante de um volume enorme de história para contar. Eis porque minha
edição de “A Dança da Morte” tem nada menos que 1247 páginas!
Fazia tempo que eu não circulava por aí, até onde me lembro, com um
livro desse tamanho debaixo do braço. E isso deu margem a uma vivência muito
interessante. Acostumadas a me ver sempre com um livro à mão, dessa vez as
pessoas reagiam à minha associação ao pequeno jumbo de King de três formas
diferentes, o que me deu a base para classificar três tipos de posturas frente
à literatura.
O primeiro tipo, felizmente o menos
numeroso, é o das pessoas que reagem com indiferença. Sinto tristeza quando
alguém se depara com um livro desses e seu rosto não esboça a menor reação,
para o bem ou para o mal. Um apenas me disse: “que livro é esse?” Um tom mais
de curiosidade que de interesse. Esses tipos eu “corto” rapidamente. No caso,
estando presente uma dupla de acadêmicos de medicina, respondi: “É que tenho o
hábito de jogar livros na cabeça de acadêmicos que fazem as coisas errado. Como
não estava adiantando muito, escolhi este.” Todo mundo ri, e assunto encerrado.
Próximo.
O segundo tipo é o das pessoas que têm
interesse ou gosto pela leitura. Nesses, as reações são variadas, mas convergem
num mesmo sentido: “Nuh, esse é grande, hein!”; “Que calhamaço, deixa eu ver!”;
“Agora você caprichou!” Um sorriso de cumplicidade e reconhecimento, em todos
os casos. Gente que se vê ali, no seu lugar, carregando o fardo debaixo do
braço, e não se assusta com isso.
E tem o terceiro tipo, das pessoas que não
gostam de ler. Nesses a reação, com pouquíssimas variações, é idêntica. Um
desses se deparou com meu livro sobre um móvel, deu uma cambaleada, e exclamou:
“Cacete, você está lendo esse?! Quanto tempo demora para ler um troço desses?” Levo
na esportiva e digo: “Estou no começo, mas posso te emprestar depois.” E ele,
torcendo o nariz: “Se eu começo a ler um livro desse tamanho, largo na terceira
página.” Fico refletindo sobre essa reação: a preocupação depressiva com a
extensão do livro, com a demora da leitura. É como se o sujeito se visse na
iminência de iniciar uma longa viagem, mas desanimasse nocauteado, já no
princípio da caminhada, pela perspectiva do tempo que perderá na vida até
atingir o ponto de chegada. O interessante é que para nós, que amamos os
livros, a perspectiva é oposta: o final da viagem é um bônus desejado, mas o melhor
de tudo é o durante, é a experiência vivida no trajeto, são as emoções
experimentadas a cada paisagem, as surpresas por trás de cada curva do caminho.
A experiência é a viagem, não seu fim. Se o livro é muito bom, então, mais do
que chegar ao final, o que você deseja é que esse final esteja o mais longe
possível!
Eu compreendo, entretanto, as razões dessa
postura do terceiro grupo. Sou parte de uma geração que cresceu, com honrosas
exceções, enxergando o ato de ler como um castigo. Não é à toa. Quando
crianças, aqueles de nós que não foram salvos por um Monteiro Lobato ou uma
Lucia Machado de Almeida, cresceram sendo obrigados a ler, na escola, os livros
dos nossos autores clássicos: José de Alencar. Machado de Assis. Guimarães
Rosa. Gigantes, melhores entre os melhores... mas NÃO para crianças de nove,
dez, onze anos! E, ao final da leitura, adivinhe: uma prova, valendo nota, para
apurar se você leu mesmo o livro, prestando atenção nas nuances dúbias dos
olhos de Capitu. Quando meu colega me pergunta “quanto tempo você leva para ler
isso?”, o que o martiriza é a duração do sofrimento, a infinitude do tédio e
dos trabalhos forçados até o terror da prova final. Por isso ele jamais
entenderá quando – e se – eu responder: “Cara, isso não tem a MENOR importância!”
Ler por prazer é uma descoberta preciosa
que, espero, há de se tornar cada vez mais comum nos tempos futuros, já que
hoje estamos diante de uma nova geração que tem, a seu dispor, uma literatura
mais adequada aos gostos e à compreensão de sua faixa etária. Dispõe também,
felizmente, em casa ou na escola, ou até na mídia que estimula
incondicionalmente o consumo, exemplos e fontes de estímulo para buscarem essa
literatura.
No prefácio de “Dança da Morte”, nos
ensina o mestre Stephen King:
“Quando me perguntam ‘Como você escreve?’,
invariavelmente respondo: ‘Uma palavra de cada vez’, e a resposta é invariavelmente
descartada. Mas é realmente assim. Soa simples demais para ser verdade, mas
pense na Grande Muralha da China: foi uma pedra de cada vez, cara. É isso aí.
Uma pedra de cada vez. Mas já li que se pode ver aquela filha da mãe do espaço
sem auxílio de um telescópio.”
Ler, por própria vontade, um livro de 1247
páginas, não é nenhuma coisa de doido, se você parar de pensar no ponto final
da última página. Ler por prazer é como King descreve: uma palavra de cada vez;
uma página após a outra; um livro depois do anterior. E a derradeira estrela do
universo é o seu limite.