terça-feira, 25 de julho de 2017

A DANÇA DOS LEITORES


Atendendo a um desejo mais ou menos antigo, iniciei hoje, no Dia do Escritor, a leitura de “A Dança da Morte” (The Stand), do mestre Stephen King. Este romance, um dos seus mais celebrados de todos os tempos dentro da obra do autor, tem uma peculiaridade: publicado originalmente em 1978, teve uma nova versão lançada em 1990. Explico: o calhamaço original estourou o orçamento do departamento de contabilidade da editora de King, e ele teve de cortar quatrocentas páginas do manuscrito original, para manter o preço de capa nos limites do que a editora considerava realizável. Na versão de 1990, que sai no Brasil pela editora “Suma de Letras”, temos a versão integral da história, com alguns cortes ainda, é verdade, mas estes realizados pelo próprio autor, exercendo seu sagrado direito.
     A obra se divide em três partes: na primeira, um erro por uma fração de segundo, cometido pelo Departamento de Defesa dos EUA, libera na atmosfera terrestre um vírus superultramegahipermortal, que rapidamente extermina 99% da população do mundo. Na segunda parte acompanhamos a saga dos 1% sobreviventes, que se dividem em dois grupos: um organizado numa sociedade pacífica, que procura preservar as bases da civilização, e outro organizado em torno de um tirano sem o menor escrúpulo quanto à volta à barbárie. A terceira parte mostrará o confronto final entre as duas forças em oposição. Se você considerar o habitual estilo “recheado” de King, estamos, então, diante de um volume enorme de história para contar. Eis porque minha edição de “A Dança da Morte” tem nada menos que 1247 páginas!
     Fazia tempo que eu não circulava por aí, até onde me lembro, com um livro desse tamanho debaixo do braço. E isso deu margem a uma vivência muito interessante. Acostumadas a me ver sempre com um livro à mão, dessa vez as pessoas reagiam à minha associação ao pequeno jumbo de King de três formas diferentes, o que me deu a base para classificar três tipos de posturas frente à literatura.
     O primeiro tipo, felizmente o menos numeroso, é o das pessoas que reagem com indiferença. Sinto tristeza quando alguém se depara com um livro desses e seu rosto não esboça a menor reação, para o bem ou para o mal. Um apenas me disse: “que livro é esse?” Um tom mais de curiosidade que de interesse. Esses tipos eu “corto” rapidamente. No caso, estando presente uma dupla de acadêmicos de medicina, respondi: “É que tenho o hábito de jogar livros na cabeça de acadêmicos que fazem as coisas errado. Como não estava adiantando muito, escolhi este.” Todo mundo ri, e assunto encerrado. Próximo.
     O segundo tipo é o das pessoas que têm interesse ou gosto pela leitura. Nesses, as reações são variadas, mas convergem num mesmo sentido: “Nuh, esse é grande, hein!”; “Que calhamaço, deixa eu ver!”; “Agora você caprichou!” Um sorriso de cumplicidade e reconhecimento, em todos os casos. Gente que se vê ali, no seu lugar, carregando o fardo debaixo do braço, e não se assusta com isso.
     E tem o terceiro tipo, das pessoas que não gostam de ler. Nesses a reação, com pouquíssimas variações, é idêntica. Um desses se deparou com meu livro sobre um móvel, deu uma cambaleada, e exclamou: “Cacete, você está lendo esse?! Quanto tempo demora para ler um troço desses?” Levo na esportiva e digo: “Estou no começo, mas posso te emprestar depois.” E ele, torcendo o nariz: “Se eu começo a ler um livro desse tamanho, largo na terceira página.” Fico refletindo sobre essa reação: a preocupação depressiva com a extensão do livro, com a demora da leitura. É como se o sujeito se visse na iminência de iniciar uma longa viagem, mas desanimasse nocauteado, já no princípio da caminhada, pela perspectiva do tempo que perderá na vida até atingir o ponto de chegada. O interessante é que para nós, que amamos os livros, a perspectiva é oposta: o final da viagem é um bônus desejado, mas o melhor de tudo é o durante, é a experiência vivida no trajeto, são as emoções experimentadas a cada paisagem, as surpresas por trás de cada curva do caminho. A experiência é a viagem, não seu fim. Se o livro é muito bom, então, mais do que chegar ao final, o que você deseja é que esse final esteja o mais longe possível!
     Eu compreendo, entretanto, as razões dessa postura do terceiro grupo. Sou parte de uma geração que cresceu, com honrosas exceções, enxergando o ato de ler como um castigo. Não é à toa. Quando crianças, aqueles de nós que não foram salvos por um Monteiro Lobato ou uma Lucia Machado de Almeida, cresceram sendo obrigados a ler, na escola, os livros dos nossos autores clássicos: José de Alencar. Machado de Assis. Guimarães Rosa. Gigantes, melhores entre os melhores... mas NÃO para crianças de nove, dez, onze anos! E, ao final da leitura, adivinhe: uma prova, valendo nota, para apurar se você leu mesmo o livro, prestando atenção nas nuances dúbias dos olhos de Capitu. Quando meu colega me pergunta “quanto tempo você leva para ler isso?”, o que o martiriza é a duração do sofrimento, a infinitude do tédio e dos trabalhos forçados até o terror da prova final. Por isso ele jamais entenderá quando – e se – eu responder: “Cara, isso não tem a MENOR importância!”
     Ler por prazer é uma descoberta preciosa que, espero, há de se tornar cada vez mais comum nos tempos futuros, já que hoje estamos diante de uma nova geração que tem, a seu dispor, uma literatura mais adequada aos gostos e à compreensão de sua faixa etária. Dispõe também, felizmente, em casa ou na escola, ou até na mídia que estimula incondicionalmente o consumo, exemplos e fontes de estímulo para buscarem essa literatura.
     No prefácio de “Dança da Morte”, nos ensina o mestre Stephen King:
     “Quando me perguntam ‘Como você escreve?’, invariavelmente respondo: ‘Uma palavra de cada vez’, e a resposta é invariavelmente descartada. Mas é realmente assim. Soa simples demais para ser verdade, mas pense na Grande Muralha da China: foi uma pedra de cada vez, cara. É isso aí. Uma pedra de cada vez. Mas já li que se pode ver aquela filha da mãe do espaço sem auxílio de um telescópio.”   

     Ler, por própria vontade, um livro de 1247 páginas, não é nenhuma coisa de doido, se você parar de pensar no ponto final da última página. Ler por prazer é como King descreve: uma palavra de cada vez; uma página após a outra; um livro depois do anterior. E a derradeira estrela do universo é o seu limite. 

quinta-feira, 13 de abril de 2017

A DITADURA DA HISTERIA











A histeria é uma doença psiquiátrica já consagrada nos anais da medicina. Manifesta-se através de duas grandes vertentes de sinais e sintomas: os de ordem psicossomática e os distúrbios psicoemocionais. A medicina tradicional tem se concentrado nas manifestações mais “exuberantes” da doença, como convulsões, desmaios e perda de memória. Até cegueira e surdez são manifestações recorrentes. Entretanto, existe outra vertente de sinais que, talvez por sua menor repercussão nas atividades diárias do indivíduo, tem sido relegada a segundo plano. O histérico tem uma forte tendência a ser o centro das atenções. É expert em manipular ou confundir a realidade e teatralizar os conflitos. Reage às pessoas e situações com grandes arroubos emocionais caricatos, muitas vezes buscando evocar a compaixão alheia.  Não sabe bem o que quer. Guia-se mais por intuições e impressões repentinas do que por juízos serenos e bem fundamentados. Você deve estar aí, se lembrado de alguém que conhece, e que se enquadra pelo menos parcialmente nessa descrição. Se é usuário das redes sociais, mais ainda...
     Para compreender o sentido deste artigo você precisa conhecer, também, o SJW (Social Justice Warrior). Esse personagem, batizado nos embates ideológicos americanos, é a arma de destruição em massa predileta da ideologia esquerdista. No jogo do xadrez ideológico, o SJW é o peão: pouco importante, sacrificável, limitado, mas que procura assumir uma aparência de relevância graças ao elevado número de indivíduos que compõe a hoste. O SJW é o defensor incondicional das minorias e dos “discriminados”; entrará, em nome destes, em brigas que não são suas com um vigor notável, transformando cada contenda em algo pessoal. Muitas vezes inventará histórias (apelidadas de “fanfiction”) para causar uma impressão de realidade no que se refere a teorias e conceitos que só ele é capaz de admitir. Pela causa, tudo vale. Será intenso, emotivo. Repetirá, usando os números do bando, uma falácia estapafúrdia tantas vezes que ela começará a ser familiar ao ouvido, e adquirir uma perigosa aparência de verdade. Seu critério normalmente é marcado por uma flagrante incoerência: um fato, uma atitude, quando serve a nossa causa é de valor, é lícito; caso contrário, será execrado impiedosamente. Reconheceu? Exatamente! O SJW tem uma elevada propensão à histeria, o que faz dele o peão ideal no tabuleiro de xadrez da ideologia de esquerda.
     Nesta semana, ganhou as redes sociais a imagem (reproduzida acima) de um grupo de estudantes (masculinos) de Medicina, de jaleco, posando para a foto de calças arriadas, fazendo com as mãos um sinal que, entre outras interpretações, simboliza uma vagina. Simultaneamente, surgiu uma foto semelhante de outra faculdade médica, só que desta vez mostrando estudantes do sexo feminino em atitude idêntica. Caso você se dê ao trabalho de pesquisar, vai descobrir que esse tipo de coisa não é novidade. É uma espécie de “piada interna” dos alunos de algumas instituições de ensino de Medicina, que se repete há anos. A diferença, agora, é que as fotos caíram nas redes sociais. E as redes sociais são, hoje em dia, o campo de caça predileto dos SJW.
     As manifestações na rede foram assustadoras, surpreendentes, por não serem, na maioria das vezes, frutos de “juízos serenos e bem fundamentados”. Logicamente, esse tipo de arroubo emocional encontra eco, com facilidade, na ignorância (no bom sentido de falta do conhecimento) e no temor.
     Em resumo, os tais alunos foram instantaneamente promovidos a médicos ou, segundo muitos, a “ginecologistas”, sem precisarem sequer esperar pela colação de grau ou sofrerem as agruras de uma penosa residência de Ginecologia e Obstetrícia. A pose desrespeitosa seria uma “apologia ao estupro”. Logo pipocam nas redes os “testemunhos” de pessoas que teriam sido vítimas de tentativa de abuso sexual por parte de profissionais médicos, e o clima passa a ser de pânico: “Ah, meu Deus, o que será de mim agora, não se pode confiar nessa pérfida categoria profissional!” Observe a escalada do absurdo. Como fogo em mato seco, é evidente que contribui para isso, aparte da má intenção e da histeria ambiente, ansiosas por se manifestarem, outra característica deplorável das redes sociais: o descompromisso e a irresponsabilidade para com a imagem e o conceito alheios, a insensibilidade, a atitude inconsequente quanto ao dano que palavras mal direcionadas podem causar nas vidas de gente inocente. Isso caracteriza as discussões nas redes sociais com elevada frequência, e é um meio de cultura fértil quando explorado por aqueles de má intenção.
     Caso você conseguisse se livrar de tudo isso, que já tomou o ambiente virtual de forma instantânea e inescapável como uma espécie de “ditadura da histeria”, poderia avaliar o caso nas dimensões que realmente tem. Poderia avaliar que, mesmo sendo uma brincadeira de estudantes, tratou-se de um ato altamente reprovável em termos éticos. Nenhum médico ou estudante tem o direito de expor negativamente sua categoria profissional. Sobretudo hoje (e voltaremos a isso), quando a categoria médica é vítima de uma campanha orquestrada de difamação por parte, inclusive, do poder constituído, a proteção da ética médica, e da relação do profissional com o paciente, deveriam ser invioláveis. Uma atitude assim, inconsequente, irresponsável, é inaceitável em alunos quase-formandos. Poderia se discutir como as universidades têm focado excessivamente na formação técnica, pela própria pressão do mercado, e negligenciado em relação à formação ética dos futuros médicos. Tudo isso PODERIA ter sido. Enquanto as discussões focalizam a imbecilidade galopante da “apologia ao estupro”, não se chegará, em termos práticos, do nada ao lugar nenhum.
     Curiosamente, a fotografia das moças de calças arriadas é escrupulosamente ignorada pelos SJW. É assombrosamente patético como, enquanto a foto “masculina” significa uma apologia ao estupro, a foto “feminina”, que para um juízo sensato é absolutamente igual, se transforma no máximo em um símbolo de “empoderamento feminino”. Pode rir, leitor, antes que seja obrigado a ouvir o clássico e previsível “meu corpo, minhas regras”.
     Quanto à falta de conhecimento, que leva ao temor, essa fantasia negativa que sorrateiramente se joga sobre o médico ginecologista ganha força nesse ambiente de insanidade histérica. Nesse microambiente viciado, onde proliferam os testemunhos de abuso sexual e o fanfiction, a insegurança quanto à confiabilidade do profissional ganha corpo. Mas... Vamos a dados concretos?
     Um estudo realizado pela USP em 2015 (http://www.usp.br/agen/wp-content/uploads/DemografiaMedica30nov2015.pdf) revela que, dentre as especialidades médicas, a ginecologia ocupa o quarto lugar em número de profissionais, com mais de 28.000 indivíduos. A média de idade dentro da especialidade é de 49 anos, e 53% desses profissionais pertencem ao sexo feminino. Não é preciso ir muito longe para entender que, na frieza dos dados estatísticos, usar uma foto de estudantes cabeças-de-bagre para demonizar toda uma categoria profissional é algo simplesmente absurdo. É inquestionável que em todo tipo de profissão existem os de mau-caráter. A Medicina não é exceção. No entanto, a despeito dos casos que, por sua mesma excepcionalidade, ganham as manchetes dos jornais, como os Roger Abdelmassih da vida, ainda que se considerem os casos verdadeiros de subnotificação que caracterizam esse tipo de abuso, estamos falando de um universo ínfimo, minúsculo, dentro do cenário global. Repetimos: longe de subestimar a importância desses casos deploráveis, consideramos que só uma avaliação realista dos mesmos pode conduzir a uma análise e a medidas eficazes, efetivas, para seu combate.
     Mas a quem interessa isso? Uma eventual campanha deliberada de difamação da classe médica não seria uma avaliação “histérica” de minha parte?
     Em 2014, o governo federal do PT lançou o Programa Mais Médicos. Segundo as justificativas explícitas para esse programa, afirmava o governo que o caos da saúde no Brasil era responsabilidade da classe médica: o médico brasileiro se recusava a ir para as áreas desassistidas do interior do Brasil; só pensando em dinheiro, o médico brasileiro, diziam muitos, tinha “nojo de pegar em pobre”. Portanto, caberia ao governo trazer 13.000 “médicos” cubanos para atender a essa população carente e abandonada, a R$10.000,00/mês por cabeça. Demais está repetir aqui o que eu e outros tratamos em vários artigos, revelando esse golpe sujo, canalha, de lavagem de dinheiro do PT para a eleição de 2014; demais estaria agora discorrer sobre como a maioria dos cubanos sequer eram médicos de verdade, como a maioria deles permaneceu (até hoje) nas proximidades dos grandes centros, deixando os sertões ainda desprovidos, uma vez que hoje, com o PT desmascarado e destronado e sua ferramenta Odebrecht enquadrada, a “casa caiu” e o próprio Programa acaba de ser cancelado. Entretanto, a mão-de-obra fácil e barata dos SJW não poderia ser desperdiçada, ainda mais se sua ideologia gramscista tem como princípio básico substituir as elites intelectuais do país por agentes infiltrados. Se você achava que o projeto morreu com o fim do Mais Médicos, tome como exemplo o artigo de Renato Rovai, publicado em 11/4/17 na revista “Forum”, tradicional e conhecido veículo de infiltração esquerdista. O título: “A imbecilidade dos médicos está se tornando insuperável e insuportável”.
     Eliminando qualquer hipótese de falta de intencionalidade, o articulista começa fazendo uma afirmação categórica: “Generalização é sempre algo bestial. Por isso, adianto, não quero generalizar aqui.” Segue uma fotografia dos infelizes alunos de calças arriadas, e então o artigo se limita a um discurso de ódio direcionado à classe médica como um todo: um bando de idiotas que se arvoram em uma casta especial; que acredita que pode tudo, incluindo todos os tipos de desrespeito aos direitos humanos; a categoria mais difícil para lidar; fraudadores; corporativistas; desumanos e irresponsáveis; filhinhos de papai que só pensam em dinheiro; corruptos; e claro, esses são a regra, e não a exceção. Apresentar provas, como caberia a qualquer acusador com um pingo de honestidade? Ele simplesmente recomenda que o leitor recorra ao “Google”, e à “enorme quantidade de artigos” que comprovariam suas palavras covardes e mentirosas. Citei apenas alguns exemplos do discurso sujo da esquerda tupiniquim estampados nesse artigo, e em nenhum momento, por mais que procure, você encontrará qualquer conexão dele com o episódio retratado na famigerada fotografia, que supostamente seria o assunto principal. Até o famigerado “Marcos do BBB”, que foi excluído do reality show global após um questionável episódio de agressão contra sua “ficante” (mereceria outro artigo), é citado nesse artigo deplorável como o avatar de um típico “cirurgião plástico”, ainda que seus atos em nenhum momento tenham qualquer, nem de longe, relação com sua profissão.

     Desnudada assim, essa situação absurda, potencializada pela ditadura histérica das redes sociais, pode parecer ridícula, inacreditável até. No entanto, caso você não seja um habitué, experimente dar uma espiada nessa insanidade explicitada no Facebook. Apenas, antes, um conselho médico: vá preparado, vacine-se com um pouquinho de atenção e bom senso. Existe uma legião de SJW que fazem a moderna medicina desconfiar de que a estupidez, assim como a histeria, são contagiosas.