domingo, 30 de dezembro de 2012

Os Cinderelos de Chuteiras


 
 

     Você pode até começar a protestar desde já, principalmente após ver as imagens delicadas que ilustram esse tópico, dizendo que “isso não é esporte, isso é ignorância”. Ou coisa pior. Não, não vou morder a isca. Pretendo tentar levar a reflexão sobre o tema a um nível um pouco mais amplo e profundo.
     Ontem fiquei até as quatro horas da matina acordado, esperando pela luta na qual Júnior “Cigano” dos Santos, um dos atuais ídolos nacionais do esporte, defenderia seu cinturão de campeão numa revanche contra Cain Velásquez, o estadunidense de ascendência mexicana de quem o brasileiro arrebatou o troféu em novembro de 2011.
     Os comentaristas do Sportv não eram capazes de conter o espírito torcedor em prol de uma neutralidade profissional que favoreceria uma análise mais técnica da luta vindoura (e um constrangimento menor depois do que se viu). Na luta preliminar, um combate digno de uma arena romana de gladiadores, protagonizado por Jim Miller X Joe Lauzon, deixou o octógono literalmente salpicado de pocinhas de sangue. Um comentarista não resiste: “Que esta seja a luta mais bonita da noite, desde que Cigano ganhe logo por nocaute.”
     Cigano entra no ringue com seu futuro algoz. Começa a dança da esquiva, enquanto Velásquez avança sobre ele como se fosse o último prato de feijão da face da Terra. Os comentaristas, coitados, explicam: “Espera até o Cigano encontrar a distância correta”; “daqui a pouco ele entra no ritmo”...
     Cigano é incapaz de manter os braços erguidos, mantendo uma guarda adequada. Escapa pelos cantos do octógono, o olhar perdido, inexpressivo. Apanha repetidamente no rosto, golpes certeiros que lhe deixarão, ao final do suplício, um olho fechado e um beiço mais parecido com uma tromba. Parece cansado. Mais sonolento do que eu. No primeiro round, leva um soco direto no rosto que, talvez seu ato mais admirável na luta inteira, não resultou em nocaute. No final, um chute no pescoço deixará a mesma impressão, a despeito do nosso espanto (e dos comentaristas sem graça) de que a luta ainda não tenha terminado rounds atrás. Com nocaute do brasileiro, claro. O treinador desesperado, nos intervalos da pancadaria, ecoava a voz de toda a torcida: “Levanta essa guarda!“, “se imponha!”. Tudo inútil. Cigano não lutou, apanhou miseravelmente, essa é a verdade.
     Ao final melancólico, surge a pergunta: “O que aconteceu?” Começarão as famosas teorias da conspiração, é claro: “Ah, isso foi para forçar uma terceira luta, um tira-teima! É tudo grana!” Pessoalmente não acredito nisso, mas sinto uma incômoda familiaridade nessa sensação pós-luta, que mistura frustração, tristeza e estupefação. Não foi o que você sentiu, por exemplo, após a final da Copa do Mundo de Futebol na França? Ou na mais recente Olimpíada, após a eliminação do futebol brasileiro (machos e fêmeas)? Ou após o fiasco de grandes esperanças de medalha, como Fabiana Murer?
     O atleta profissional brasileiro ocupa uma posição ingrata. Por um lado, tem uma das torcidas esportivas mais apaixonadas, e que mais cobram resultados. No Brasil, todo mundo sabe disso, o segundo lugar é o primeiro dos perdedores. Por outro lado, tem entidades esportivas, desde as políticas até os clubes, cujo verdadeiro apoio ao esporte está, sabidamente, abaixo da crítica. Enquanto escrevo essas dolorosas linhas, o Flamengo acaba de anunciar a extinção de sua equipe de natação; nossos maiores nomes da modalidade, principalmente o multimedalhista Cesar Cielo, estão sem clube a partir de 2013. Imagine-se diante duma pressão desse tipo. Você tem que ir lá e trazer a pele do leão, “duela a quien duela”. Nossos esportistas batalham por suas especialidades, só para generalizar o que é a regra, sem dinheiro, sem patrocínio, sem material de treinamento, sem planejamento, e o pior de tudo, sem um apoio psicológico decente, presente em qualquer potência mundial dos esportes, que permita ao indivíduo suportar a carga de seu desafio profissional, acrescida de alguns quilos de inseguranças pessoais, e algumas toneladas de cobranças da torcida e da mídia. Não será por isso que, na hora H, nossos atletas amarelam num tom mais doentio e fosco do que o da adorada Seleção Canarinho?
     O que aconteceu realmente com Ronaldo na França? Onde estava Neymar em Londres? Fabiana Murer arregou em meio à corrida para o segundo salto, e não pulou mais. Colocou a culpa no “vento”. OK. As demais atletas saltaram normalmente. Que redemoinho maldito era esse, que só ventava nela?????
     Talvez as autoridades competentes não se apressem em mudar essa situação porque sabem muito bem que nós, brasileiros, adoramos um Cinderelo de Chuteiras. Domingo no Fantástico: o menino pobre da favela, que saiu da miséria com o sacrifício da família, contra tudo e contra todos, e se transformou num ídolo do esporte nacional! Com narração de um locutor de voz bondosa e sonhadora, e depoimentos lacrimosos de pais, mães e treinadores de várzea. Quem descobre talento esportivo em categoria de base, no Brasil, é empresário garimpeiro que está preocupado com os ganhos pessoais. O sonho do brasileiro comum é ver seu ídolo naquele menino descalço que jogava num campinho de terra, e foi avistado pelo grande time profissional enquanto o ônibus se deslocava para o estádio. “Opa, coloquem aquele moleque para dentro, que vai ser nosso próximo centroavante!”
     Desde o Jeca Tatu, e o sertanejo, que é antes de tudo um forte, a mentalidade brasileira venera essa versão ingênua e estereotipada da “jornada do herói”, de Joseph Campbell: o pobrezinho que supera as dificuldades da vida comum, quanto mais, melhores, e vira um sucesso. Nossos atletas são, de preferência, encarnações desse conto de fadas deturpado.
    
   


     Apesar disso (e talvez exatamente por isso) não perdoamos quando um Cigano da vida sobe ao ringue e não luta. Miller e Lauzon, na luta anterior, foram aplaudidos de pé pela audiência. Os dois homens queriam ganhar. Mostraram isso a preço de sangue, literalmente. Até o fim. Cigano subiu e apanhou pacientemente até o final do quinto round, embalado pelo som de uma audiência inteira que gritava seu nome em sinal de apoio. Até o fim. Nada disso o comoveu.
     Júnior Cigano nos deve uma explicação, que não seja o vento: que sua mãe foi sequestrada, e seria morta se ele não entregasse a luta; que acabava de descobrir que sua namorada o traía com o Minotauro; que estava com uma simples e prosaica caganeira. Desculpe, Cigano, mas fiquei até as quatro da matina para vê-lo lutar. Pelo menos lutar! Diferentemente da maioria dos brasileiros, que só aceita o lugar mais alto do pódio, confesso que senti falta de ver seu esforço. Um pouquinho que fosse, e não ver isso foi deprimente. O Cinderelo de Chuteiras pode ser um sonho ingênuo e quimérico, mas o que você me proporcionou, como exemplo de atleta, foi infinitamente mais inacreditável. E, como foi real, assustador.  
     Mas, como eu disse, deixo o benefício da dúvida. Pode ter alguma explicação decente. E que seja boa, porque nossos meninos do esporte carecem muito de bons exemplos, não só de vitória, mas de luta. Sabe o que é? É que vem aí uma Olimpíada no Brasil. E vocês não vão ter grana, nem apoio oficial, nem planejamento, mas o que todo mundo quer, na verdade, é muita medalha. Perto do que vejo no horizonte, amigo Cigano, o que o Velásquez lhe fez vai parecer um beijo de mãe.




 

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Os Mortos, os Vivos e as Mídias


Spoilers(?)

"Vocês os veem aí fora. Sabem que, quando morrermos, nos transformaremos naquilo. Acham que nos escondemos atrás destas paredes para nos protegermos dos mortos-vivos! Não entendem? Nós SOMOS os mortos-vivos!" (Rick Grimes, TWD, livro 4) 

     Você tem aquele amigo de infância. Aí vocês vão crescendo, e conhecendo outros amigos. De repente, aquele amigo de infância começa a evitar você. Ele agora anda com um pessoal mais cool, e você... bem, você não é. “Mas como assim?”, você quer saber. E a nossa amizade? “Bom, o tempo passa, as pessoas mudam”, explica seu grande amigo cool. Talvez lá no fundo ele nem sinta isso de verdade, mas está gostando de ser cool. E de ter novos amigos cool. Ele tem uma nova zona de conforto cool na vida, e prefere deixar assim do que trocar o certo pelo duvidoso. Ou pelo antigo. E correr o risco de ser expelido do mundo cool. Ele prefere ser redefinido pelo meio que o cerca, e que se dane o que um dia pensou ou sentiu. Você? Acaba mandando o amigo ir tomar conta dos seus cools, e la nave va...

     Acredite, a série “The Walking Dead”(TWD) é sobre isso. Isso e um monte de outras coisas interessantes para se pensar a respeito. Na verdade existem duas séries: a original, em quadrinhos, criada e orquestrada por Robert Kirkman, que já conta, até a data presente, com nove livros publicados no Brasil pela editora HQM; e a série de TV, com duas temporadas já em DVD e uma terceira em exibição (produzida por Frank Darabont).

     Como de hábito faço com as produções que mais me atraem, esperei o final de cada temporada para adquirir a série em DVD, e assisti as duas temporadas em ritmo de maratona. Ao final, acometido por uma certa síndrome de abstinência, resgatei da MIPCPL (Monumental e Interminável Pilha de Coisas Para Ler) os nove volumes publicados por aqui, e li em sequência.

Há semelhanças empolgantes e diferenças cruciais entre o original em papel e a versão live action da TV. Longe de ser motivo de protesto, isso serve para observar com clareza as diferenças entre as mídias. Tem coisa que funciona em papel, mas que simplesmente não cabe na telinha, e vice versa. A diferença fundamental, que origina todas as outras, é a seguinte: na literatura, você sempre acompanha uma história sob o ponto de vista de alguém. Mesmo nas obras com narrador onisciente, narradas em terceira pessoa, sua percepção passa pelo filtro de algum personagem, ou em última instância do autor. Isso dá margem a que surjam obras interessantíssimas. Em “Entrevista com o Vampiro”, Anne Rice conta a história pelo ponto de vista do personagem Louis. No livro seguinte da trilogia, “O Vampiro Lestat”, é o personagem que dá nome ao livro quem narra a mesmíssima história do primeiro volume, dando ao leitor uma perspectiva complementar e muito diferente diante dos mesmos fatos. Já brinquei com esse recurso em um conto chamado “Efeitos Adversos”, publicado na antologia “Paradigmas 2” (Tarja). Atualmente, George R.R. Martin, nas “Crônicas de Gelo e Fogo”, também usa esse recurso com maestria, com seus capítulos narrados por diferentes personagens. Já a mídia visual, o cinema ou a TV, não tem essa perspectiva “interna”. Ela é totalmente “externa”, focada na ação. No caso da TV, em especial, também se foca na concisão e na velocidade. Na TV você não tem o acesso a profundas e prolongadas reflexões de um personagem. Se acontecer, fica muito chato! Na TV você mostra a cena, e o espectador capta, filtra e deduz. Cabe ao diretor induzi-lo à percepção ou ao sentimento que ele deseja. Os quadrinhos transitam entre essas duas mídias; ora é visual, ora pode se dar ao luxo de ser mais intimista, através de diálogos ou recordatórios. A despeito disso, falando especificamente da adaptação para a TV de TWD, destaca-se em alguns pontos o talento dos roteiristas, tornando algumas coisas mais verossímeis que as que vemos na HQ... embora nesta, pela própria facilidade propiciada pela mídia estática e estilizada, o autor possa levar algumas cenas, especialmente no que se refere à violência, a níveis que a TV não ousa.
 

     “The Walking Dead” conta a história do xerife Rick Grimes, de uma pequena cidade do Kentucky (USA), que é baleado em ação e fica em coma durante semanas. Quando acorda, depara com um mundo bastante diferente daquele que conheceu: nada menos que um “apocalipse zumbi”. As pessoas mortas vagam de forma (aparentemente) aleatória pelas ruas das cidades em ruínas, à caça dos últimos sobreviventes humanos, de cuja carne se alimentam. O leitor/espectador não tem noção da dimensão da tragédia. Não há mais meios de comunicação. Não há mais governo ou instituições organizadas. Não se sabe se a “praga” atinge o país ou o mundo. Os humanos sobreviventes se organizam como podem, lutando dia a dia, solitários ou em bandos, pela própria sobrevivência: por um lado, buscando víveres e armamentos para se defenderem, ou esconderijos decentes. Por outro, fugindo dos milhares de zumbis, cuja mordida é o suficiente para provocar a morte e a transformação da vítima em um deles. O cenário é brutal, aflitivo, literalmente apocalíptico. Na TV, a trilha sonora (espetacular) só faz piorar as coisas.

     O mais interessante da série, seu “nervo motor”, é exatamente o seguinte: o que nos torna humanos? O que chamamos de humanidade, civilização ou, simplesmente, “aquilo que sou”, é determinado pelo ambiente ao meu redor e pelas forças que atuam nele, ou por sólidas convicções internas? São exatamente as perguntas que estão na raiz da ideia por trás de meu primeiro romance, “Quintessência” (Monções). Em TWD, os zumbis são apenas parte do cenário, mas uma parte fundamental, são o elemento que impulsiona os seres humanos e que ao mesmo tempo os limita, fazendo emergir “a fórceps” o que de fato existe dentro da cada um. Sem a maquiagem da civilização, das regras e convenções sociais, e dos “politicamente corretos” da vida, cada um passa a ser o que é ou o que consegue ser.

     Observei que cada temporada da série da TV acompanha aproximadamente o conteúdo de cada álbum lançado no Brasil, cada um destes compilando seis edições da revista original. Na primeira, acompanhamos o despertar de Rick Grimes no hospital, seu primeiro confronto com os zumbis, seu primeiro encontro com humanos, sua procura por sua família, o encontro do grupo que constituirá sua nova “comunidade”, a aventura no CDC (que não existe na HQ!). Na segunda temporada, a chegada do grupo à fazenda de Herschel, novos conflitos éticos e morais, e terminará com a chegada à penitenciária que lhes servirá de abrigo a partir do terceiro álbum da HQ. Algumas diferenças importantes: na TV, a existência dos dois irmãos Dixon, Daryl e Merle, que inexistem nos quadrinhos. Eles acabarão substituindo outros personagens originais em algumas tramas e relacionamentos importantes para a série. A “durabilidade” diferente de alguns personagens; antes de prosseguir, um aviso: esqueça George R.R. Martin, aquela “mocinha sentimental”; em TWD, mais do que nunca, evite se afeiçoar a QUALQUER personagem. Qualquer um! A pequena Sophia, por exemplo, acaba tendo uma sobrevida bem menor na TV, mas protagoniza uma cena que, na minha opinião, acaba sendo uma das mais terríveis da série até agora, diante do celeiro de Herschel. Outra coisa bem própria da mídia da TV: a economia de personagens, “enxugando” os roteiros, provoca diferenças fundamentais. Dale, que surge na trama como uma espécie de guardião da velha moral, acaba acumulando funções, na TV, com Herschel, que tem a mesma idade aproximada e as mesmas características. Ou seja, Dale vai “dançar” bem antes do que se esperava. Isso, se nos priva de seu romance com Andreia, por outro lado nos permite assistir com maior velocidade e clareza a transformação da moça, de mulher frágil com tendências suicidas a guerreira implacável. A família de Herschel nas HQs, composta de seis filhos (um no celeiro, cinco em casa...), acaba resumida na TV a duas filhas, uma mulher mezzo-falecida e um enteado, sem o menor prejuízo à trama. Pelo contrário, a simplifica e dá agilidade. É notável a sutil, porém importantíssima diferença entre o confronto final Rick/Shane/Carl nos quadrinhos e na TV. A cena na HQ, se transposta fielmente para a telinha, talvez fosse de uma violência excessivamente brutal para essa mídia, mesmo pelos padrões HBO. Na TV, entretanto, a pequena mudança na situação de Shane suaviza a cena o suficiente para ser empolgante sem ser agressiva, mesmo que com isso antecipe em uma temporada a descoberta de um aspecto importante da “fisiologia zumbi” que, nas circunstâncias originais, só seria descoberta depois, protagonizada pela filha de Tyreese. Ainda que esteja me poupando de assistir os episódios da terceira temporada na TV, seguindo minha filosofia descrita no princípio, outro dia assisti, por acaso, a cena do combate entre Michonne e o Governador, e tive idêntica impressão: na TV, mídia “em carne e osso”, a sequência foi amenizada no quesito violência, sem no entanto perder nada em qualidade. No entanto, tendo seguido a leitura até o nono volume, esse aspecto me deixa apreensivo. Até que ponto a TV será capaz de amenizar o que ainda está por vir? Se não leu, acredite: é chocante.

 

     Algumas referências que percebi, e aqui deixo claro que são suposições minhas, sem nenhum conhecimento do quanto se sustentam na realidade: Robert Kirkman me pareceu ser um fã de Indiana Jones, especialmente no filme “O Templo da Perdição”. A maneira como Rick Grimes encontra e se relaciona com Glenn, já no primeiro capítulo, remete diretamente ao relacionamento Indy/Shorty. Inclusive o visual de Glenn é praticamente idêntico ao do pequeno oriental do filme, a semelhança chegando ao mesmo boné de baseball. Também o chapéu do xerife Grimes, que o preserva a todo custo e o transfere, numa espécie de ritual de passagem, ao filho Carl, remete diretamente ao relacionamento de Indy Jones com seu adereço característico. Quanto ao Governador, seu visual nas HQs acaba sendo uma compilação do que devem ser os personagens que lhe delegaram seus traços psicológicos, configurando um dos mais terríveis vilões da ficção: um pouco de Vlad Tepes, um pouco de Capitão Gancho. Na TV, já vi que esse visual foi modificado radicalmente, adaptando o vilão aos nossos dias de bandidos bem vestidos, escanhoados e penteados, relegando sua alma negra ao que levam dentro. Vide Brasília no meio da semana.

     Em TWD, só os fortes sobrevivem. Às vezes, nem esses. Mas o que mais importa é: o que é necessário para não sucumbir à “praga zumbi”? Até que ponto devem ser mantidas as antigas convicções de um mundo que mudou radicalmente? Até que ponto é permitido negar a si mesmo? Pense nisso quando conhecer uma turma cool. Ou, em tempos de redes sociais, para incluir no texto mais uma mídia, a da internet, como se preservar da “dentada zumbi” que nos faz sucumbir à fatídica “adesão emocional” às causas virtuais de origem, intenção ou legitimidade mal definidas? Você tem o hábito de “curtir” ou “compartilhar”? Cuidado. Os mortos-vivos estão em toda parte, e um deles pode ser você.
 

domingo, 10 de junho de 2012

Sturgeon e os Bárbaros



Quem acompanha este blog há de se lembrar de uma postagem antiga, sobre essas criaturinhas pusilânimes que ululam e pululam na internet, chamadas “trolls”. Mais recentemente, outra publicação sobre os “pobres de espírito”. Bem, pois considere esta publicação atual, fiel leitor, como a terceira parte da saga.  

     Talvez eu já tenha mencionado aqui Theodore Sturgeon, escritor de ficção científica falecido nos anos 80, autor dos roteiros de episódios célebres de Star Trek (TOS), como “Shore Leave” e “Amok Time”. Esse homem um dia pronunciou a preciosa frase que viria a ser imortalizada como a “Lei de Sturgeon”. Segundo ele, no que se refere à indústria cultural, “noventa por cento de tudo é lixo”.

     Produtos culturais surgem de mentes humanas. Seria um erro, entretanto, supor que, considerando os produtos finais, 90% dessas mentes também sejam lixo. Qualquer mente criadora tem seus bons e maus momentos, de acordo com a competência e a disposição da musa, mas ninguém é 100% feliz na criação. Alguns diriam que nem Deus acertou sempre, se pensarmos nos dinossauros, nas baratas e no jiló. O problema é quando algumas mentezinhas insistem em engrossar a fila pouco meritória dos 90%, e o fazem às vezes por incompetência, mas na maioria das vezes por razões menos nobres ou desculpáveis.

     Aquela fatia do fandom (grupo de fãs que adoram e discutem ficção científica, fantasia ou terror, e seus ambientes herméticos de convivência) que lida com a literatura fantástica (aka “litfan”) é composta, em sua maioria, por nerds. Não vou cair na tentação de dissecar aqui os tipos de nerd, porque já existe neste blog um tópico sobre isso. Mas, de qualquer forma, a visão que ordinariamente se tem de um nerd inclui, entre outras coisas, sua índole reflexiva e pacífica. Não, esqueça Columbine e outras distorções similares do Primeiro Mundo, vamos falar do “nerd normal”, se é que existe isso. Somos, na maioria, doidos mansos. Eis porque encaro, a princípio com perplexidade, a atual onda de agressividade orquestrada por um pequeno, porém barulhento grupo de nerds, que se autonomearam “arautos da moral e da qualidade” dentro da litfan (“moral” e “qualidade”, bem entendido, de acordo com seu conceito, às vezes muito exclusivo e pessoal).

     Há pessoas, e aqui talvez possamos, sim, estabelecer um paralelo com Columbine, que passam seus dias carregando as pressões das dificuldades econômicas, do bullying, da frustração das próprias expectativas e desejos, e que extravasam tudo isso por trás do volante de um carro, transformando-se em verdadeiros homicidas em potencial sobre quatro rodas. Isso é muito comum. Não espere, porém, que alguns nerds reajam da mesma forma, mesmo porque alguns nem possuem (ou pretendem possuir) carro. Esse tipo peculiar de nerd age diferente, mas com o mesmo efeito final: cria um blog e sai descendo sua borduna não convidada em textos, e sobretudo em autores, que não façam parte de seu grupelho, que não se importem com ele, ou simplesmente não sejam do agrado pessoal de um ou outro desses pilares da decência de calças sujas. Dois sinais muito eloquentes podem ser observados com frequência nesse tipo de blog, que denunciam claramente a má intenção que move seus atores: o anonimato, recurso habitual dos covardes, e as impiedosas críticas a detalhes, no caso de autores, que absolutamente nada têm a ver com suas obras: defeitos físicos, peculiaridades comportamentais da vida pessoal, etc. O objetivo, obviamente, é destruir, ofender, diminuir, ainda que essas cabeças ocas depois repousem num travesseiro e se justifiquem, afirmando serem “agitadores das coisas”. Grandes coisas...

     Esses “nerds bárbaros”, ou “barbanerds”, não percebem que depõem contra si mesmos (aqueles que têm a decência de se identificarem, claro). Não são capazes de escapar de uma imagem de incompetência (não sei fazer, então destruo), mau caráter (não gosto, então humilho) ou pobreza de espírito (estou aqui para dizer umas verdades que ninguém diz). Verdades. OK...rs*

     Barbanerds nem sequer podem ser considerados legítimos amantes da litfan, pois em sua miopia de entendimento não percebem (ou pouco estão se lixando para) o fato de que estão prestando um desserviço a um gênero que já sofre para conquistar seu espaço no ambiente cultural brasileiro, sem precisar dessa gentinha promovendo a discórdia. Falta paciência, falta tolerância, mas falta, acima de tudo, bondade e humildade nessas pessoas, cuja sensação de triunfo, após um de seus ataques estúpidos, eu duvido que dure mais que um dia ou dois, substituída por um provável amargor de quem se sente uma pessoa ruim.

     Algum deles vai acabar lendo estas linhas e, com certeza, seus comentários a respeito serão algo como “essa panelinha está desesperada com nossas humilhações sucessivas...KKKKKKK”, ou partirão para ataques pessoais, proclamando a minha própria obtusidade, hipocrisia, ou alguma outra idiotice semelhante. Aguardem. Espiem. Espero que não demore, para que os fatos, mais que minhas insuficientes palavras, deem ao leitor a real medida do quanto, como disse Sturgeon, 90% de tudo é lixo. Em algumas mentes pouco favorecidas, parece chegar a 100%.

sexta-feira, 25 de maio de 2012



RESENHA – O MAPA DO TEMPO [Félix J. Palma]

FC ou não FC, eis a questão...

     “O que é ficção científica?” continua sendo uma das perguntas cuja resposta correta vale um milhão de dólares. Para qualquer definição dada, não demorará para que algum nerd devoto apareça, tirando da manga pelo menos um ou dois exemplos que, de alguma forma, fugirão da definição proposta, e ainda assim terão características que os dignifiquem para se candidatarem ao gênero. Talvez uma das definições mais completas, entretanto, que prima por sua simplicidade, foi-me oferecida pelo espanhol Félix J. Palma em seu romance “O Mapa do Tempo” (editora Intrínseca, 2010), ganhador do XL Prémio Ateneo de Sevilla em 2008. Palma define como “romance científico”, para usar uma terminologia mais adequada ao século XIX onde se desenrola sua história, "qualquer história fantástica que tentasse se justificar por meio da ciência”. Salta aos olhos uma nova pergunta: “O Mapa do Tempo” é ficção científica?...

     O romance nos é apresentado na forma de um fix-up em três partes. Na primeira, o torturado jovem londrino Andrew Harrington procura uma forma de voltar no tempo para salvar a vida de Marie Kelly, a mulher por quem era perdidamente apaixonado e que foi a quinta vítima do serial killer conhecido como “Jack, o Estripador”. Curiosamente, essa mesma moça foi personagem de uma das noveletas mais queridas de minha própria lavra, “Os Primeiros Aztecas na Lua” (coletânea Vaporpunk, editora Draco, 2010). Para esse fim, Harrington recorre a uma improvável empresa chamada “Viagens Temporais Murray”. Seu proprietário, Gilliam Murray, realiza expedições turísticas regulares a um dia específico no ano 2000, para que seus clientes testemunhem a derradeira batalha da guerra apocalíptica entre humanos e autômatos, vencida pelo Capitão Derek Shackleton, herói humano que confronta Salomão, líder dos robôs assassinos, num duelo de espadas. Paralelamente, entra discretamente em cena ninguém menos que o escritor H.G.Wells, que acabara de lançar seu romance “A Máquina do Tempo”, e que, de maneira insidiosa, acaba tornando-se o personagem central em torno de quem se desenrola toda a narrativa do livro em suas três partes.

     Na segunda etapa do livro mergulharemos nos bastidores da “Viagens Temporais Murray”, e acompanharemos a terna história de amor entre Claire Haggerty, uma jovem decididamente muito avançada para seu tempo, e ninguém menos que o Capitão Derek Shackleton, sim!, o herói da humanidade do ano 2000! A sequência onde o rapaz se esforça para seduzir a mocinha usando uma salada de paradoxos temporais, e a insana troca de cartas “retrofuturistas” que se segue são, para mim, o ponto máximo do livro.

     Na terceira parte de “O Mapa do Tempo”, quando o título da obra finalmente se explica, uma série de assassinatos misteriosos coloca o inspetor Colin Garrett, da Scotland Yard, na pista de um suposto assassino viajante do tempo, que aparentemente tem a intenção de eliminar três célebres escritores vitorianos e apoderar-se de suas obras mestras antes de sua publicação. São eles ninguém menos que o próprio H.G.Wells (“O Homem Invisível”), Bram Stoker (“Drácula”) e Henry James(“A Volta do Parafuso”), todos personagens retratados com uma humanidade ao mesmo tempo divertida e comovente. Outro personagem real desse período histórico tão suculento para os escritores de literatura especulativa, a Era Vitoriana, que é apresentado no livro de forma marcante, é Joseph Merrick, o Homem Elefante, que será uma influência fundamental para os rumos tomados pela carreira de Wells.

     Em dado momento, sobre a obra mestra de Henry James, o autor escreve: “Ao ver James sorrindo de modo dissimulado, Wells se perguntou como seria aquela história de fantasmas que no fundo não devia ser de fantasmas, ou talvez fosse, mas provavelmente não, já que levava a pensar que era.”

     Acontece que “O Mapa do Tempo” é exatamente isso: uma história de viagem no tempo que no fundo não deve ser de viagem no tempo, ou talvez seja, mas provavelmente não, já que leva a pensar que é. Ao longo de suas 470 páginas o leitor passará por etapas sucessivas e contraditórias: isso é ficção científica; não, não é ficção científica; mas será?... Em linguagem leve e folhetinesca, como se fosse uma obra escrita no período que retrata, o autor nos apresenta um retrato ao mesmo tempo encantador e fascinante da Londres vitoriana e seus personagens. Mais ainda, ele nos faz um relato esclarecedor do que se esconde no fundo da alma de um escritor; de ficção científica, no caso. Por tais motivos esse é um livro que certamente agradará a todos: fãs de FC e leitores do mainstream. Talvez ele lhes mostre que não são, afinal, dois grupos tão conflitantes como às vezes pretendem parecer.

     Se é uma história de FC, eu obviamente não vou revelar. Deixo essa surpresa para o leitor, que há de se encantar, como eu me encantei, com a forma como Palma, ao final da trama, une todas as pontas soltas de maneira perfeita. Mas uma coisa é mais que eloquente: “O Mapa do Tempo” é uma linda homenagem a nós, escritores, a nossos anseios e medos, a nossa solidão e ao nosso júbilo, e é um tributo da melhor qualidade ao nosso “subgênero” preferido, a ficção científica.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Os Pobres & Os Pobres



Essa odisseia filosófica começou assim: minha esposa engravidou e, prevendo as óbvias complicações na dinâmica doméstica que isso traria futuramente, decidimos trocar nossa diarista, que nos atendia duas vezes por semana, por uma empregada que dormisse no serviço. A primeira, a diarista, era uma pessoa de origem humilde, porém habituada a ler, gostava de filmes, e sua filha, até onde eu sei, aprendia inglês e estudava informática. Não se preocupe com isso agora, a relevância de tudo isso virá adiante.
Por sugestão da empregada de minha irmã, excelente funcionária que cuida bem da casa e de
minhas duas sobrinhas, admitimos em janeiro uma conterrânea sua, uma senhora de cinquenta e poucos anos, analfabeta de pai e mãe, mas que se mostrou muito feliz e grata com a oportunidade, e disposta a se adaptar e a aprender o que não dominava no que se refere a serviços domésticos.
O nascimento de nossa filha seria no final de março. Por dois meses, minha esposa se empenhou em deixar a empregada “afiada” para nossas necessidades; eu, por minha parte, limpei o antigo quarto de despejo para que pudesse acomodá-la, e compramos colchão novo, TV de tela plana, e até, por sugestão de minha mãe, um rádio a pilha, do qual que ela gostou mil vezes mais do que da TV (damn!).
Duas semanas antes da data do parto, fomos surpreendidos com a notícia de que ela “não pretendia ficar”. Mas por quê, indagou desesperada minha esposa quase a termo, foi algo que fizemos? “Não, não me acostumo com Belo Horizonte”, foi a resposta dela. Ressaltou que minha esposa foi a melhor patroa que ela teve, e o quartinho que arrumamos para ela era perfeito. O problema era que queria voltar para a roça.
Ficamos atônitos. O salário oferecido a ela, diante do que ela ganhava no interior, resolveria
todos os seus problemas, inclusive uma alegada reforma de que sua casinha necessitava. Ela já havia trabalhado em Belo Horizonte antes, ou seja, a desculpa de que “não se adaptava” parecia meio fajuta. De fato, conversando com sua amiga, funcionária de minha irmã, soubemos que nossa senhora de cinquenta e poucos anos arranjara um namorado em sua cidade, durante o carnaval, e por isso se mostrava dominada por uma ansiedade adolescente no sentido de retornar para o interior.
Minha esposa pediu, quase implorou, para que ela pelo menos nos esperasse conseguir uma
substituta. Ela, meio a contragosto, concordou. Entrevistamos algumas, e um número alarmantemente significativo chegou a “fechar negócio” conosco, apenas para dois ou três dias depois voltarem atrás, pelas razões que nos pareciam mais descabidas: a discordância de uma filha, já que ela trabalhava de babá para a neta; a ex-patroa, que chorou e entrou em crise depressiva quando ela falou em sair do emprego, e por aí vai. Estava difícil. Nossa “prestativa” auxiliar dava palpites, ansiosa pela notícia de que tinha uma substituta, para poder nos olhar pelas costas.
Chegou o dia do nascimento de nossa filhinha. Nossa empregada apaixonada recebeu seu derradeiro salário na manhã de sexta-feira, antes de sairmos para a maternidade. Minha esposa pediu que ela retornasse no domingo para nos ajudar, com o que ela concordou, mas levou todas as suas coisas, e não quis levar nossa chave de casa. “Por quê? Você vai voltar mesmo?” Ela respondeu: “Claro, não sou uma pessoa irresponsável, pode ficar tranquila.” Não voltou. Nem atendeu aos telefonemas. Nunca mais a vimos, o que, admito, não foi desagradável.
Talvez o pior da sensação ruim se deva ao fato de você atuar com toda ética, boa vontade e lealdade com uma pessoa assim, crendo que está fazendo um grande bem a ela, e a resposta sugerir que você é uma grande e ingênua besta. Por outro lado, se algo de bom se retira da experiência, foi minha reflexão a respeito dos tipos de pobre.
Existem pelo menos dois grandes grupos de pobres: chamei-os de “pobres de dinheiro” e “pobres de espírito”.
Anos atrás conheci uma moça muito bonita, uma mulata alta, de olhos verdes, sempre bem vestida, uma simpatia só. Convivíamos dentro de um grupo, e tempos depois fiquei sabendo, por uma amiga mais antiga, que ela havia nascido na favela, em uma família muito, mas muito pobre. Lutou muito com seus próprios meios, e agora tinha um cargo de responsabilidade e destaque em um grande banco. Fiquei admirado, e sempre me lembrava dela quando eventualmente conhecia pessoas assim: desprovidas de recursos materiais, jamais usavam isso como desculpa para autocomiseração, ressentimento social ou justificativa para atos condenáveis. Esses “pobres de dinheiro”, uma vez que era apenas o material que lhes faltava, conservavam sua moral e sua dignidade, lutando contra adversidades às vezes enormes até seu merecido reconhecimento e melhora de vida. O “pobre de dinheiro”, concluí, tem esperança. O problema mesmo é o “pobre de espírito”. Este tem uma visão estreita e mesquinha da vida, egoísta e imediatista. Seu limitado círculo de conforto é sua maior preocupação, e apenas se move para conservá-lo com um mínimo grau de esforço. O “pobre de espírito” não respeita as necessidades ou a vontade de ninguém que orbite mais longe que seu umbigo sujo. Já conheci inúmeros. Não apenas minha ex-auxiliar, em quem penso com um prazer malévolo esperando o dia em que o namorado do carnaval dê-lhe um pé nos fundilhos; quem sabe um dia alguém me ligue, pedindo referências dela para um emprego? Não, não desejo mal a ninguém, mas também não vejo por que prejudicar outro pobre patrão ocultando a verdade. Conheço outro caso, de uma senhora que fazia serviços gerais em uma escola, e um dia pediu as contas. “Mas por quê, fulana?” – esses pobres sempre surpreendem seus empregadores da mesma forma – “Logo agora que seu marido faleceu?” Ela responde alegremente: “É por isso mesmo, vou receber a pensão dele, não preciso mais trabalhar.” O “pobre de espírito” quer se dar bem, mas não se preocupa em melhorar, o que é muito diferente, mas o mais curioso é que “pobre de espírito” e “pobre de dinheiro” são duas coisas sem o menor ponto em comum. O primeiro não é necessariamente um “duro”. Tem “pobre de espírito” profissional liberal, explorando e pisando em colegas menos experientes ou mais ingênuos, faltando com a ética profissional das formas mais desavergonhadas. Tem aquele que é empresário, e se mete em todo tipo de falcatruas falsificando remédio ou material de construção, superfaturando negociatas, entrando em maracutaias, doa a quem doer, desde que a ele mesmo não doa. O que mais tem é “pobre de espírito” político, como você pode ver diariamente nos jornais, e suas atitudes e palavras chegam a ser verdadeiras afrontas ao senso comum, ainda que
eles profiram suas enormidades com um sorriso cínico no rosto. Em termos de quantidade, não sei qual grupo tem mais gente, mas já disse uma vez o pensador argentino González Pecotche: “A miséria moral é mil vezes mais espantosa que a material.”
Uma coisa é certa: o “pobre de espírito”, tenha dinheiro ou não, é um câncer dentro da estrutura social, seja em que âmbito atue.
Para sua tranquilidade, leitor: nossa filhinha nasceu e está muito bem e muito linda. E já arranjamos outra auxiliar, uma daquelas que deram para trás, mas em um lampejo de bom senso (que esperamos que dure) voltou atrás. E assim vamos vivendo, até a próxima surpresa.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Os Ratos Roeram a Roupa da Rainha do Rock


Esta semana me encontrei casualmente com a Ana Bhering, amiga médica já de outros carnavais, e ela me pareceu particularmente chocada. Explicou-me a razão: acabava de retornar do show da Rita Lee em Aracaju, sua despedida dos palcos, e ainda não havia se recuperado do susto e da indignação diante do que viu naquela noite. Pior, havia visto imagens brutais que lhe pareciam estar sendo mantidas deliberadamente ausentes dos principais veículos de comunicação. Imagens de fatos que dariam uma outra visão, pelo menos mais aprofundada, da "versão oficial" mantida pelos principais veículos de imprensa. Saí pensando em como continuamos formando nossos julgamentos com base no que a imprensa se digna a nos mostrar, como fazem os mágicos que atraem nossa atenção para a mão esquerda, enquanto executam o truque com a direita. Mas pensei também que para isso "Deus criou a internet, viu que era boa, e então fez as redes sociais e os blogs". Foi para permitir que as testemunhas oculares divulgassem o outro lado da moeda, dando assim os elementos para que o leitor, de posse de mais informações, julgue por si mesmo.
Como o objetivo deste blog é, em última instância, chegar à essência das coisas, cedo este espaço à amiga Aninha, a destemida Raposa do Orkut, para que relate o que viu com suas palavras. E cada um que julgue por si mesmo. Alea jacta est.
No dia 28/1/2012 fui a Aracaju/SE para assistir ao show de Rita Lee, que havia sido anunciado como o último de sua carreira. O evento fazia parte da programação do “Verão Sergipe”, com entrada franca, e o show foi apresentado na praia de Atalaia Nova.
Perdi o vôo de ida e, por este motivo, quando cheguei ao local o show já tinha começado. Na plateia estavam cerca de 20.000 pessoas. Apesar disso consegui passar aos poucos pela multidão até me posicionar em frente ao palco, prova de que o público estava aproveitando pacificamente o espetáculo. Por onde passei só vi gente alegre, e todos foram tão cooperativos com a minha tentativa de passar na frente que me lembro ter pensado em como o povo nordestino sabe aproveitar festas de rua – neste caso, na praia.
Contudo, durante o espetáculo, policiais armados com cassetetes entraram no meio da multidão, possivelmente em busca de drogas, empurrando e intimidando as pessoas com tamanha truculência que Rita Lee, por duas vezes, interrompeu o show pedindo para que eles não estragassem o evento, uma vez que o público queria apenas se divertir e ninguém estava provocando qualquer tumulto. Embora Rita tivesse feito estes primeiros apelos com bom humor, sendo intensamente aplaudida, pouco depois surgiram dezenas de policiais abrindo caminho na multidão, inexplicavelmente EMPURRANDO E AGREDINDO a platéia.
Algumas cenas de agressão foram gravadas e estão circulando na internet. Não muitas, pois obviamente quem estava perto não se atreveu a registrar (na mira de cassetetes você tentaria filmar?) Eis uma delas:
https://www.youtube.com/watch?v=LnknEZSW5rs&feature=youtube_gdata_player

Visivelmente emocionada, Rita saiu em defesa dos fãs enfrentando a polícia e exigindo retratação pelo uso da violência. Nunca vi tamanha coragem.
“Isso é força bruta! Vocês não têm o direito de usar a força na meninada que não tá fazendo nada! Cadê o responsável? Eu quero falar! Esse show é meu, não é de vocês! Esse show é minha despedida do palco, e vocês continuam tendo que guardar as pessoas – não agredir, seus cachorros! Eu sou do tempo da ditadura, vocês pensam que eu tenho medo? Eu sou mulher! MULHER! Eu tive três filhos, tenho uma neta, 67 anos, o que vocês vão fazer? É isso que vocês querem? Chamar atenção? Eles querem chamar a atenção! Querem cantar? Querem o que? É horrível! Por que isso? Por que?”
“Não, eu não vou esperar! Esse show é meu, as pessoas estão esperando eu cantar, não a gracinha de vocês, seus filhos da puta! Agora venham me prender!”

Eu nunca havia presenciado cenas de violência gratuita como as ocorridas naquela noite, muito menos um artista se expondo dessa maneira para defender sua platéia. A imprensa, contudo, divulgou amplamente a reação de Rita SEM MENCIONAR A VIOLÊNCIA, com a clara intenção de justificar sua detenção ao término do espetáculo por desacato à autoridade.

A vereadora Heloísa Helena, que estava na platéia e presenciou tudo, foi até a delegacia prestar depoimento em favor de Rita Lee. Depois declarou pelo twitter:

“Chegando de Aracaju após Lamentável e Triste acontecimento na tentativa de Rita Lee em promover uma Linda Despedida de Palco. Aceito democraticamente ferozes críticas recebidas MAS entre a "contabilidade de seguidores" e minha Consciência em Relatar o que Vi ficarei sempre com minha Consciência e nunca na Comodidade do Silêncio! O Assunto está na Justiça e por Obrigação Moral vou Testemunhar! Deixando de lado as explicações a quem eu Respeito! O que aconteceu? Eu estava bem pertinho e Vivenciei...Vi e ponto!!! Após "ação policial" de empurrões contra Meninada (que não estava fumando maconha nem badernando!) Rita Lee verbalizou: Vão procurar os políticos ladrões...tem tanto político fdp pra vocês acharem"...mais ou menos isso! Daí começou o Conflito/Tumulto... Ela ficou todo o Tempo explicando que era uma Mãe, Avó, 67 Anos, queria fazer uma Festa Linda Despedida e pediu que os Policiais não ficassem todo o tempo circulando na frente do Palco (eu estava e não tinha confusão!) Depois, claro...Provocação gera Provocação! Vou testemunhar em Defesa da Rita Lee como faria diante de Qualquer Injustiça a Policial, Catador de Lixo, Morador de Rua”.

O governador Marcelo Deda afirma que estava no camarote e “não viu nenhuma ação policial que justificasse a reação da cantora”.

AMIGOS, EU AFIRMO QUE HOUVE SIM, AÇÃO ABUSIVA E INEXPLICÁVEL POR PARTE DA POLÍCIA. EU ESTAVA NA PLATÉIA E PRESENCIEI TUDO DE PERTO. OS POLICIAIS USARAM CASSETETES, INTIMIDARAM E BATERAM. ASSIM COMO A VEREADORA HELOISA HELENA, ESTOU DECLARANDO O QUE VI.

Um rapaz membro do fã clube da cantora, que a acompanha há anos em seus shows pelo Brasil, foi empurrado e agredido sem nenhum motivo aparente. Não estava usando ou portando drogas e não havia oferecido qualquer resistência à passagem dos policiais, mas obviamente se recusou a ser levado por eles para fora do local, sabe Deus para onde e com qual objetivo. Esta cena também foi filmada (vejam link abaixo)
http://www.youtube.com/watch?v=j3DF75MwM5c&feature=related

O que mais me espantou foi constatar que situações como esta são encobertas de tal forma pela imprensa que devem ocorrer muito mais frequentemente do que imaginamos, sem que a verdade
jamais chegue ao conhecimento da população. Inúmeros pseudo jornalistas apareceram como ratos para defender as autoridades em blogs medíocres, divulgando criticamente a reação de Rita Lee como se nada tivesse acontecido para provocá-la. Nem preciso dizer que não o fazem a troco de nada, me causa nojo pensar. Vários ainda elogiaram a polícia “pelo bom senso de aguardar o fim da apresentação para aplicar a lei prende-la sem causar maiores tumultos”.

O promotor Antonio Rolemberg afirmou no twitter:
1- Rita Lee se excedeu nas declarações”
(Pergunto: E A POLÍCIA? NÃO SE EXCEDEU EM NADA NÃO?)
2- “O Poder público deve ser respeitado”
(Pergunto: SÓ O PODER PÚBLICO? MEU CARO, TODO CIDADÃO MERECE RESPEITO!)

Diante da repercussão do caso, e da impossibilidade de freiar a divulgação da verdade nas redes sociais, o governador Marcelo Deda declarou via twitter:
“Ainda sobre o show da Rita Lee: o cachê foi pago e o show, mesmo com problemas, foi feito até o fim. Contrato executado, pagamento feito, caso encerrado”.
Convenhamos, é muito conveniente “encerrar o caso” quando a verdade vem à tona.
Sabem vocês que sou fã de Rita Lee e acompanho sua carreira desde a infância, contudo o que estou relatando aqui nada tem de parcial. A violência gratuita da polícia não foi testemunhada apenas por mim. Eu nunca tinha vivido situação semelhante, foi assustador. Abram seus olhos, a ditadura não acabou.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Por Linhas Nada Tortas




Se você leu meu post anterior a este, no blog, há de se lembrar de minha exortação dirigida ao novo escritor brasileiro, no sentido de, a fim de se tornar um bom escritor, investir na criação de personagens reais e humanos.
Não poderia haver prêmio melhor para este autor que lhes escreve, amargurado pelas superficialidades destes tempos de escrita digital, do que ler logo em seguida o excelente romance "Por Linhas Tortas" (Novo Século -2011), livro de estreia da jovem escritora Cynthia França.
O romance conta a história de Ester, advogada carioca que teve uma juventude daquelas “certinhas”, onde tudo correu às mil maravilhas, de acordo com o script elaborado para a vida de qualquer pessoa feliz e normal. É feliz na amorosa família de origem, e gosta de seu trabalho, ainda que não haja sido a primeira opção de seu coração. Tem alguma tendência ao isolamento, mais isso não impede que conheça, ainda nos tempos de faculdade, o homem de sua vida, com quem sonha constituir família e viver o resto de seus dias. Mesmo nesse caminho o futuro promete seguir a mesma sina da perfeição, até que uma conversa por telefone vira seu mundo pessoal de pernas para o ar. Pela primeira vez na vida, Ester olha para o futuro e vê nuvens escuras e insondáveis. Pela primeira vez experimenta a raiva e o desamparo trazidos pela adversidade, o “por que eu?”, e é obrigada a amadurecer à força e sem anestesia. Ao longo de 321 páginas o leitor acompanha passo a passo uma emocionante história de lutas, dúvidas, alegrias, decepções e superação.
A estrutura do romance me agradou logo de cara. Sendo narrado em primeira pessoa, Cynthia
abdicou da tradicional divisão em capítulos. Os parágrafos são divididos em grupos, separados por pequenos espaços vazios. Utilizei exatamente a mesma estrutura em meu romance de estreia, "Quintessência". Na época, já que a história era narrada pelo meu protagonista Tom Rizzatti, quis passar ao leitor a impressão de que alguém estava lhe contando um caso, como numa conversa informal. E convenhamos, conversas informais não são separadas em capítulos com títulos e números. A prosa de Cynthia França provoca o mesmíssimo efeito. O leitor rapidamente acolhe Ester como uma amiga próxima, e acompanha seu relato com a fluidez e a leveza que a autora foi capaz de lhe infundir com brilhantismo. O livro se converte, sem que o leitor sinta, em um "page turner".
Mas o mais impressionante de tudo é exatamente a credibilidade dos personagens. Sua humanidade absurda, tanto da protagonista como de todos os secundários, com camadas de psicologia superpostas, nos causa uma sincera dúvida sobre o quanto daquelas pessoas de fato caminha pelas ruas à nossa volta. É exatamente por isso que acompanhar a trajetória de Ester é alecionador. Através de suas experiências absolutamente verossímeis, qualquer leitor haverá de encontrar um paralelo com suas próprias lutas e dúvidas, com suas próprias vivências ou as de pessoas próximas. E é, acima de tudo, uma aula de como a sensibilidade humana é capaz de funcionar como um farol que guia o barco do indivíduo com segurança através de um mar tempestuoso e coberto de neblina. Das últimas páginas ao final de "Por Linhas Tortas", senti uma emoção e uma felicidade notáveis. Minha vontade era deixar o livro, com meus sinceros agradecimentos à amiga Ester, e ir tratar de cuidar bem e ser feliz com as pessoas que amo.
Numa época de literatura superficial e árida, "Por Linhas Tortas" se destaca por conferir um sopro de doce esperança quanto ao futuro da literatura brasileira. Dizem à boca pequena que a estreante Cynthia França já segue escrevendo seu segundo livro. Penso que nós, amantes da boa prosa, merecemos isso. Quanto a mim, mal posso esperar.