quarta-feira, 1 de junho de 2011

Exorcizando um comichão...




Sabe aquele comichãozinho indefinido que fica te incomodando o tempo todo, meio no consciente, meio no subconsciente, sem que você lhe dê a devida atenção, e assim ele não passa? Quase uma macacoa? Pois eu estava com um desses, e decidi encará-lo de frente. Tem a ver com o tal "politicamente correto".


Lembro-me de quando li sobre isso em algum lugar, já faz alguns anos. Uma matéria sobre essa nova moda, surgida (que surpresa!) nos EUA. Na época achei meio cômica, essa ideia de mudar o nome das coisas para, de algum modo, atenuar o conteúdo que elas continuam tendo. Outras pessoas com quem comentei também acharam engraçado, como se fosse um criacionismo, ou uma cientologia da vida. Acontece que, nesse mundo que assumiu o tamanho de um "quarteirão global", a coisa cresceu e se espalhou. Pior: foi assumida como cool pela intelectualidade de vários países, incluindo o Brasil, fazendo jus a seu status de nação em desenvolvimento. Foi assim que a coisa pegou por estas bandas. É, mes amis, a coisa ficou afrodescendente...


O "politicamente correto" é uma forma politicamente correta de censura. Obviamente, seus principais defensores são as vítimas de qualquer forma de discriminação, como os negros, os homossexuais, os deficientes físicos, os idosos. Fazem coro os rincões mais hipócritas da elite intelectual, funcionando como o cimento que sustenta essa ridícula fachada. O que essas "minorias discriminadas" não percebem é que aderir e defender o "politicamente correto" não muda em essência, e não melhora em absolutamente nada sua condição em um nível de profundidade maior que o de um pires. Sim, a discriminação tem que ser frontalmente e exemplarmente combatida, e para isso existem as leis e a regulamentação acessória, que garantem a todo cidadão ser tratado com igualdade e sem agressão verbal, física ou moral por parte de qualquer outro cidadão. Isso sim, é o que vale e o que surte efeito. Agora, convenhamos: chamar negro de afrodescendente não o torna menos preto. Chamar homossexual de homoafetivo não o torna menos gay, nem o velho fica mais jovem quando muda de "terceira idade" para "melhor idade". Mas o pior de tudo é que, além de não alterar em nada a condição do discriminado, a mudança de palavras também não atua em nenhum sentido para atenuar a discriminação, o desprezo, a agressividade ou a atitude preconceituosa do indivíduo que detém essas coisinhas feias guardadas dentro de si. Quem é racista e fala "negro", não fica nem um pouco menos racista quando fala "afrodescendente", o que faz do "politicamente correto" uma forma de hipocrisia, uma maquiagem carregada, superficial e que não contribui em nadica de nada para melhorar a situação das minorias e fazer evoluir nossa condição social. Da mesma forma que a cultura estadunidense costuma ser o supra-sumo do entretenimento, mas não alcança o nível do subcutâneo, voltada exclusivamente para fora do ser humano, os entusiastas do "politicamente correto" querem fazer de nossa cultura sua Hollywood pessoal. O que é necessário, e muito necessário mudar urgentemente, é o conteúdo por trás das palavras, e não sua forma externa. Se na História do Brasil o termo "preto" foi carregado de conteúdo pejorativo, é preciso que primeiro se faça com que as novas gerações percebam esse erro e a enormidade desse absurdo, e a partir daí modifiquem, primeiro dentro de sua razão e de seu sentir, e depois nas suas relações com aqueles que os cercam, o recheio que vai por trás do termo. Porque, como o ser humano, as palavras também têm um corpo (a palavra escrita), uma alma (a palavra falada) e um espírito (o significado da palavra, o conceito que vai por trás dela). Enquanto o "politicamente correto" pretende alterar o corpo e a alma da palavra, maquiando-a como uma velha prostituta (ou eu deveria estar falando "profissonal do sexo"?) carrega nas cores e nas medidas das roupas para vender uma imagem que lhe renda mais clientes e aumente seu faturamento, é preciso atuar na causa, e modificar o espírito das palavras.


Recentemente participei de um vibrante e proveitoso arranca-rabo (e quero usar essa palavra aqui antes que me obriguem a dizer "extirpa-nádegas") em uma comunidade do Orkut a respeito justamente do racismo. Percebi, divertido, como as pessoas preferem negar que a cultura do país evoluiu, de uma mentalidade francamente racista (e socialmente aceita com naturalidade), influenciada pelas ideias eugenistas europeias e registradas para a posteridade nas obras de vários escritores consagrados, para uma cultura com uma visão crítica aguda o suficiente para condenar e elaborar leis que condenam essa atitude. Preferem simplesmente rotular o tal autor como "racista", condená-lo, e não se fala mais nisso. Não se leva em consideração o contexto, e por isso nada, absolutamente nada se aprende.


Falo de autores como Monteiro Lobato (que foi o estopim da discussão), Leopoldo Lugones, José de Alencar, Jorge Amado e até Gilberto Freyre. Sim, o autor de "Casa Grande & Senzala", a obra que é citada por muitos como o marco da virada de uma mentalidade onde a mistura de raças era sinônimo de decadência para a ideia de que essa miscigenação trazia benefícios inquestionáveis, em seus primeiros tempos registrou, como os outros citados e muitos mais, ideias racistas ou discriminatórias em livros, artigos de jornais, declarações pessoais, etc.


Como devemos nos comportar em relação a isso? Se Monteiro Lobato sedimenta seu racismo no romance "O Presidente Negro", então OK, o cara é racista... mas e daí??? O que fazemos com isso no século XXI? É o caso de censurar a obra, banindo-a como (não a) vejo em mais de uma lista de obras do autor em sites da internet? Reescrever as obras, como querem fazer os americanos com Mark Twain? Proibir "Caçadas de Pedrinho" na educação infantil, como pretendem nossos "educadores"? Melhor não seria promover uma leitura dirigida, estimulando as crianças e adolescentes a pensarem por si mesmos, de forma que compreendam o contexto psicológico da época, entendam que nós evoluímos desde ali, e que manter aquela postura retrógrada hoje em dia é muito, muito ruim? Não há mais benefício nisso do que em varrer nossos podres para debaixo do tapete psicológico?


Minha esperança é que chegará o dia em que, da mesma forma como hoje torcemos o nariz e abanamos a cabeça diante das ideias eugenistas europeias que consideravam a mistura das raças um sinal da degradação de um país, um dia alguém vai olhar para trás e agir da mesma maneira em relação à época em que as pessoas levavam a sério esse negócio de "politicamente correto". Se não, pode chegar o dia em que nossa hipocrisia cresça tanto e extravaze pelos poros, e contamine o ar que respiramos, e ninguém vai nem ligar se um desses políticos highlanders, que só desaparecem do cenário se tiverem literalmente a cabeça cortada, chegar ao cúmulo de assumir a presidência do Senado e mandar tirar da galeria de fotos históricas aquelas que fazem referência ao impeachment do Collor. Pode ser que ele diga que aquilo "é um evento menor, que não devia ter acontecido", descendo mais um degrau na fossa imunda do "politicamente correto", e vai ficar por isso mesmo. Vocês duvidam? Pois esperem só pra ver...

13 comentários:

  1. Maquiar expressões preconceituosas de livros escritos em época onde ser preconceituoso era "politicamente correto" me lembra um pouco de 1984. Por que será?

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  2. Proibir "Caçadas de Pedrinho" na educação infantil, como pretendem nossos "educadores"? Melhor não seria promover uma leitura dirigida, estimulando as crianças e adolescentes a pensarem por si mesmos, de forma que compreendam o contexto psicológico da época, entendam que nós evoluímos desde ali, e que manter aquela postura retrógrada hoje em dia é muito, muito ruim?

    Só uma coisa: a ideia foi JUSTAMENTE essa. Quem alardeou sobre proibir foi a imprensa, veículos como O Globo, Folha de São Paulo e o Estadão. O que o MEC queria era colocar mais uma nota de rodapé no livro [porque o mesmo já vinha com uma, sobre ambientalismo], pra ajudar os alunos e os professores a trabalhar as obras. Ninguém falou em proibir nada, por mais que esses veículos de imprensa tenham dito que sim.

    E você acha melhor, honestamente, chamar um grupo minoritário como ele se AUTOdenomina ou como um grupo alheio que o dominou por séculos e séculos decidiu chamar? Numa época de afirmação desses grupos acho que eles possuem o direito de dizer "não quero mais o rótulo que foi imposto a mim, quero criar minha própria cara". E as palavras, tem sim poder. Mudar a mentalidade é o objetivo principal, mas começar mudando as palavras foi o começo, foi por onde esses grupos decidiram seguir.

    O que eu acho curioso é que a maioria das pessoas que reclamam do "politicamente correto" [q eu eu não vejo isso, nesses casos, mas enfim] estão reclamando na verdade que elas não podem mais ser abertamente racistas ou homofóbicas, ou de qualquer forma preconceituosas. "Antigamente que era bom, quando eu podia dizer que esses pretos safados num prestava nenhum! Mas hoje nem posso, malditos politicamente corretos..."

    Eu acho que tem que se rever essas coisas.

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  3. Texto lúcido, Flávio!
    Porque, no fundo, o politicamente correto é uma forma de camuflar o racismo, a homofobia e outros preconceitos.
    Curioso é que na década de 1960, os negros norte-americanos não se diziam "afrodescendentes". Eles diziam simplesmente "Black is beautiful!"

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  4. Para o Tibor, que citou o livro "1984": pra você ver, cada um tem o Big Brother que merece...rs*

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  5. "infrareal"...

    >Só uma coisa: a ideia foi JUSTAMENTE essa. Quem alardeou sobre proibir foi a imprensa, veículos como O Globo, Folha de São Paulo e o Estadão. O que o MEC queria era colocar mais uma nota de rodapé no livro [porque o mesmo já vinha com uma, sobre ambientalismo], pra ajudar os alunos e os professores a trabalhar as obras. Ninguém falou em proibir nada, por mais que esses veículos de imprensa tenham dito que sim.<

    Não foi bem assim, amigo. A recomendação do MEC considerava a opção de "não distribuir" o livro para as escolas públicas. Mas parece que alguém lá anda lendo meu blog...rs* Veja aqui:

    http://www1.folha.uol.com.br/saber/924824-conselho-de-educacao-reve-parecer-sobre-obra-de-monteiro-lobato.shtml

    >E você acha melhor, honestamente, chamar um grupo minoritário como ele se AUTOdenomina ou como um grupo alheio que o dominou por séculos e séculos decidiu chamar? Numa época de afirmação desses grupos acho que eles possuem o direito de dizer "não quero mais o rótulo que foi imposto a mim, quero criar minha própria cara".<

    Acho que cada grupo pode se autodenominar como quiser. A questão é COMO mudar uma conotação que vem de séculos. A forma atual do "politicamente correto", o patrulhamento ideológico e a censura velada, não me parece a forma melhor nem a mais inteligente.

    >O que eu acho curioso é que a maioria das pessoas que reclamam do "politicamente correto" [q eu eu não vejo isso, nesses casos, mas enfim] estão reclamando na verdade que elas não podem mais ser abertamente racistas ou homofóbicas, ou de qualquer forma preconceituosas. "Antigamente que era bom, quando eu podia dizer que esses pretos safados num prestava nenhum! Mas hoje nem posso, malditos politicamente corretos..."<

    Você me desculpe, mas na minha experiência não tem sido assim. Não me considero racista, e minha condenação do "politicamente correto", como descrita acima, acho que está bem fundamentada. Outras pessoas com quem convivo (veja em outros comentários por aqui...) compartilham essa visão, e não vejo nada tão tosco como a defesa de uma livre expressão do racismo nisso.

    >Eu acho que tem que se rever essas coisas.<

    É para isso que estamos aqui. :-)

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  6. highwayman...

    >Curioso é que na década de 1960, os negros norte-americanos não se diziam "afrodescendentes". Eles diziam simplesmente "Black is beautiful!"<

    Sim, eu me lembro dessa época de maior pureza e inocência (curiosamente, enquanto a verdadeira mentalidade racista era combatida das formas corretas). Tinha também as brincadeiras dos Trapalhões com o Mussum, que no "maravilhoso mundo do politicamente correto" seriam absolutamente inviáveis, por mais inocentes que fossem.

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  7. Estou escrevendo um romance onde um dos personagens é negro e é chamado de tiçãozinho, negro de merda, negrinho e preto piche. Estou me fodendo pro "politicamente correto". Precisa ser coerente com a trama (e com a personalidade de que o chama assim) e isso me basta.

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  8. É, Flávio. Tem muita gente que infelizmente ainda se mesmeriza pelo fetiche das palavras (por sinal achei excelente tua divisão "tri-corpórea"). Isso deve vir da mesma raiz que é a velha confusão entre palavras e pensamentos. O interessante pra mim é que quando comecei a ler o início do teu texto me veio imediatamente a notícia da censura do Presidente do Senado. Também acho que este tipo de atividade se baseia no mesmo tipo de solução em "varrer pra baixo do tapete" o incômodo em vez de eliminá-lo como se deve.

    Engraçado como o povo brasileiro volta e meia tse manifesta por ataques de "ofendites" agudas e "ofendismos" crônicos que beiram o ridículo. Sempre achei que somos muito mais sensíveis quanto à nossa auto-imagem que o povo americano, por exemplo. Alimentar isso a meu ver é um erro que só perpetua a torta orientação de maquiar soluções em vez de aplicá-las que é ma das coisas que tanto me irritam no nosso povo. O fato de me chamarem afetadamente de calvo (ou, pior ainda, de "desprovido de cabelo", o que não tem poder de ofensa sendo apenas a pura verdade) não seria pior do que simplesmente me chamarem de careca, seja brincando ou não? Temos mais é que parar de dar importância às excessivas sensibilidades das pessoas e passar a atacar o cerne dos atos discriminatórios. Eventuais atos de "bullying verbal" só têm força se a platéia compartilha dos preconceitos que precedem qualquer nomeação. Condicionamento pela mera imposição de tabus nunca foi uma técnica que tenha funcionado muito bem.

    Ficaria então só o velho ditado de que "paus e pedras podem quebrar meus ossos, mas palavras nunca".

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  9. Catarsezinha grande essa em amigo?

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  10. Tibor...
    Estou vivendo a mesma coisa com uma noveleta, passada na época da colonização britânica na África. Às vezes me cansa só pensar na polêmica depois...rs*

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  11. Ricardo...

    O que você disse complementa tudo o que escrevi no post.

    >Engraçado como o povo brasileiro volta e meia tse manifesta por ataques de "ofendites" agudas e "ofendismos" crônicos que beiram o ridículo. Sempre achei que somos muito mais sensíveis quanto à nossa auto-imagem que o povo americano, por exemplo.<

    Isso é típico de quem tem o tal "complexo de inferioridade", uma vaidade inspirada na sensação de estar sendo colocado abaixo dos outros. O problema, regra geral, está em quem manifesta a tal "ofendidite". Quem lê ou ouve acha o que você falou: ridículo.

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  12. João...

    Grande e grossa, amigo, grande e grossa...rs*

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  13. A propósito desta discussão, recebi este texto de minha esposa por e-mail. Enjoy...

    Outro dia estava no mercado quando vi no final do corredor um amigo da

    época da escola, que não encontrava há séculos. Feliz com o reencontro

    me aproximei já falando alto:



    - Oswaldo, sua bichona! Quanto tempo!!!!



    E fui com a mão estendida para cumprimentá-lo. Percebi que o Oswaldo me

    reconheceu, mas antes mesmo que pudesse chegar perto dele só vi o meu

    braço sendo algemado.



    - Você vai pra delegacia! – Disse o policial que costuma frequentar o mercado.



    Eu sem entender nada perguntei:



    - Mas o que que eu fiz?



    - HOMOFOBIA! Bichona é pejorativo, o correto seria chamá-lo de grande

    homossexual ou de homoafetivo enorme.



    Nessa hora antes mesmo de eu me defender o Oswaldo interferiu tentando

    argumentar:



    - Que isso doutor, o Quatro-olhos aí é meu amigo antigo de escola, a

    gente se chama assim na camaradagem mesmo!!



    - Ah, então você estudou vários anos com ele e sempre se trataram assim?



    - Isso doutor, é coisa de criança!



    E nessa hora o policial já emendou a outra ponta da algema no Oswaldo:



    - Então você tá detido também.



    Aí foi minha vez de intervir:



    - Mas meu Deus, o que foi que ele fez?



    - BULLYING! Te chamando de quatro-olhos por vários anos durante a escola.



    Oswaldo então se desesperou:



    - Que isso seu policial! A gente é amigo de infância! Tem amigo que eu

    não perdi o contato até hoje. Vim aqui comprar umas carnes prum

    churrasco com outro camarada que pode confirmar tudo!



    E nessa hora eu vi o Jairzinho Pé-de-pato chegando perto da gente com

    2 quilos de alcatra na mão. Eu já vendo o circo armado nem mencionei o

    Pé-de-pato pra não piorar as coisas, mas ele sem entender nada ao ver

    o Oswaldo algemado já chegou falando:



    - Que porra é essa Negão, que que tu aprontou aí?



    E aí não teve jeito, foram os três parar na delegacia e hoje estamos

    respondendo processo por HOMOFOBIA, BULLYING e RACISMO.

    *Moral da história: Nos dias de hoje é um perigo encontrar velhos amigos!*

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