quarta-feira, 22 de junho de 2011

Hormônios em Fúria!





Esta postagem inaugura, como prometido, a temporada de resenhas de livros neste blog. Começamos com "Os Herdeiros dos Titãs", romance de fantasia medieval escrito por Eric Musashi.


Antes de entrar em cheio no tema, porém, permitam-me uma breve digressão para que se compreenda meu "estado de espírito" durante toda a leitura desse livro. Eu era um adolescente quando comecei a escrever meu primeiro romance, e era de fantasia medieval. No momento de iniciar esta resenha, dei-me conta de que nem me lembro mais do título, mas era uma história passada num país-continente que inventei chamado "Gardja". Um jovem presencia a tentativa malograda de assassinato de uma alta autoridade religiosa, e sendo erroneamente incriminado é obrigado a fugir de sua pacata vila. Ao mesmo tempo, forças malignas há muito tempo adormecidas dão os primeiros sinais de estarem despertando uma vez mais em diversos pontos do continente. Eu escrevia esse livro (que nunca foi concluído) usando caneta esferográfica, em um caderno de espiral. Sentia culpa por estar escrevendo sobre fantasia medieval num país onde não houve Idade Média, mesmo que meus nomes de lugares e pessoas fossem fictícios e "impessoais" no que se refere a países conhecidos. Escrevia inspirado por minha leitura do único autor de livros de fantasia em que se conseguia por as mãos naquela época, J.R.R.Tolkien (que eu havia lido e pensado : "Isso daria um filme sensacional!" Mal sabia eu...). E comecei a me exasperar porque a viagem inicial de meu protagonista ia se estendendo e se estendendo por intermináveis páginas, e a ação propriamente dita estava longe de começar. Nem cogitei em transformar minha obra numa trilogia, como está tão em moda ultimamente, principalmente no meio dos escritores iniciantes que não têm noção da fria em que estão se metendo com uma ideia assim. Mas o mais bacana de tudo, o que eu mais gostava, era de criar meu mundo ficcional. Desenhei um mapa detalhado, com os nomes das províncias, as cidades, dos rios e principais acidentes geográficos, e criei características para o povo de cada lugar. Inventei as bases de um alfabeto fictício, e as primeiras regras de gramática para usá-lo. Mas como já adiantei, tudo isso se perdeu como lágrimas na chuva(copyright by Roy, Nexus 6).


Lendo "Os Herdeiros dos Titãs", de Eric Musashi, todas essas recordações voltaram embaladas por uma suave e doce nostalgia. O livro relata a saga de um pequeno grupo de personagens, alguns em fuga após uma rebelião desajeitada e um assassinato acidental, outros buscando a reunião de dignatários credenciados a decidir a respeito de uma futura campanha de conquista, em um reino comandado por uma suposta rainha-deusa imortal e suas cinco eminências pardas encapuzadas. É basicamente uma longa viagem dividida em capítulos, sendo que ao final todos os personagens se reúnem para o desfecho dramático.


Duas coisas, logo de cara, você pode perceber a respeito de Eric Musashi, o autor: ele é um escritor jovem, e esse é seu primeiro romance. Isso traz duas consequências, uma boa e outra ruim. A boa é que ambos os fatores estão fadados à resolução, com o passar inexorável do tempo e o aumento da experiência. A ruim é que essa juventude e inexperiência têm efeitos impactantes no livro, sendo responsáveis por basicamente todas as suas deficiências, que analiso em primeiro lugar.


Um "macete" que aprendi com os editores, em termos de obras longas como um romance, é que você tem que fisgar os leitores nas primeiras trinta páginas, ou uma boa parte deles abandonará o livro. Isso fica difícil em "Os Herdeiros...", uma vez que nas primeiras quarenta páginas o leitor, que ainda não passou por uma etapa fundamental da leitura (saber quem é o protagonista!), passa por nada menos que três saltos cronológicos diferentes, para o passado e para o futuro, o que nessa etapa da leitura gera confusão. Uma delas, pelo menos (o primeiro encontro entre Téoder e sua amada Faná), poderia ser deslocada para mais adiante, na forma de uma reminiscência. Isso inclusive intensificaria o efeito dramático do sofrimento de Téoder, uma vez que muito precocemente somos informados de que a jovem foi morta por suas próprias mãos.


Além disso, Musashi parece ansioso em explicar desde logo as particularidades do mundo que criou, e as páginas iniciais estão abarrotadas de notas explicativas sobre calendário, pontos cardeais, contagem de tempo e distâncias, etc., que quebram o ritmo da ação e poderiam perfeitamente ser inseridos com mais suavidade ao longo da trama. A propósito, em minha opinião nem seria necessário inventar novos critérios para distância e contagem de tempo, por exemplo, pois isso pode confundir desnecessariamente o leitor e nada influencia na trama principal. Essas notas explicativas seguem abundantes por toda a obra, incluindo dados sobre história, mitologia, geografia e costumes locais, de uma forma que muitas vezes continuam quebrando o ritmo. Nesse ponto até compreendo Musashi, pois como disse na minha reminiscência inicial, essa tentação é praticamente irresistível; apenas acredito que, com tempo e experiência, esses dados serão acrescentados ao texto de maneira mais suave.


Em termos de enredo, alguns pontos "desajeitados" que em grande parte também podem ser atribuídos à inexperiência do autor: primeiro, a morte precoce de um personagem no momento exato em que começava a se delinear um promissor triângulo amoroso, morte essa que (pelo menos até agora) teve uma importância praticamente irrisória em tudo o que acontece depois. Mas como o final sugere uma continuação da saga, é algo que tem o potencial de ser solucionado. Segundo, Musashi abusa de alguns recursos de linguagem, que apesar de lícitos acabam comprometando a leitura por serem usados à exaustão; por exemplo, a expressão "um tanto..." é usada precendendo algum adjetivo pelo menos três ou quatro vezes por capítulo. Terceiro, ele usa algumas expressões que soam contraditórias quando usadas juntas, e mesmo que sejam possíveis, em termos literários soam estranhas. Por exemplo, corações que batem "descompassados em uníssono", "chuva fraca e copiosa", ou sol combinado com uma "chuva torrencial". Algumas expressões, principalmente nos diálogos, poderiam na norma culta serem substituídos com ganho em qualidade do texto, como "ha-ha-ha" ou "argh".


A narrativa de Musashi é extremamente visual, e isso em alguns pontos desvia o foco do essencial da cena (p.ex.: "a garota (...) estava muito abalada, e nem percebia que os seios balançavam enquanto corria alucinada."). A onisciência do narrador, em alguns momentos, também se perde de forma desnecessária (p.ex.: "...gritou Arion, depois de atacar Nagos com uma espada de telapuro apanhada não se sabe onde."). Ele também faz uso, vez ou outra, de expressões pouco literárias como "nos conformes", "dar uma bronca" ou "atemorizada como bicho do mato". Entenda-se, tais expressões estariam melhor encaixadas em textos mais descontraídos, mas numa saga de fantasia medieval acabam funcionando como uma pedra no feijão. O mesmo acontece (com maior repercussão ainda) nas falas de alguns personagens, como quando a rainha-deusa protesta porque as pessoas vieram "fazer bagunça no meu castelo".


Alguns trechos acabaram me divertindo muito pelo humor involuntário que evocam. Por exemplo: "Sua barba estava feita, e ele tinha tomado banho recentemente, talvez neste mesmo dia, pois cheirava bem." Ou nesta explicação, após a descrição do ambiente altamente promíscuo e libertino vigente numa festa em Catebete: "Com tanto incentivo à cópula - como à bebida e ao banquete -, o uso de métodos contraceptivos, e as constantes baixas na invasão das Planícies Proibidas, uma vez que não havia guerras externas, eram o que protegia os atalais de problemas de superpopulação." Ou quando o jovem Arion, observando sua outrora amiguinha de infância Ariádan entrando nua nas águas de um rio, começa a perceber as novas curvas de seu corpo de mulher e imagina seus beijos... enquanto chupa uma laranja.


Isso me remete a uma característica muito peculiar e curiosa de "Os Herdeiros...": a maioria absoluta dos principais personagens, com a exceção provavelmente única de Téoder, dos Encapuzados e da rainha-deusa Quetabel, está na faixa etária entre vinte e trinta anos. No entanto, seu comportamento às vezes sugere uma idade ainda menor, com ações e reações típicas da fase adolescente, quando os hormônios se encontram em ebulição máxima! A própria Quetabel, uma mulher de mais de setecentos anos de idade, tem reações espantosamente juvenis, como quando Téoder se esquece de seu aniversário, ou em suas explosões de ciúmes diante das mais irrisórias insinuações. É curioso como nos três casos de relacionamento sexual mais explícito (Arion & Ariádan, Téoder & Quetabel, Luredás & Neara), as mulheres são deliciosamente atiradas, enquanto os homens são desesperadoramente travados, cada qual com seu motivo: Arion por sua confusão de sentimentos por Ariádan, Téoder por sua culpa, Luredás por estar se envolvendo com a esposa de um amigo); é sintomático que as três acabem "pagando o pato" por esse assanhamento, sendo deixadas para trás logo após o ato. Outra característica altamente testosterônica, vigente principalmente entre os personagens masculinos, é uma introspecção mal-humorada que sublinha praticamente todos os diálogos. Todo mundo parece ter algo a esconder, e uma relutância permanente em dar informações cria uma tensão à flor da pele. A rudeza mútua permeia as conversas, e o tempo todo são dadas "más respostas", de forma que os personagens estão constantemente pedindo desculpas uns aos outros por suas palavras. No entanto, quando se decidem a revelar o que econdem, a maioria deles acaba até mesmo se excedendo nas informações, antes de retornar rapidamente à atitude reservada de antes. A óbvia metáfora da espada como arma dos guerreiros, com todas as suas peculiaridades e virtudes, é uma constante ao longo da trama (curiosamente, a arma da única mulher explicitamente guerreira é uma lança). Mesmo quando Musashi toma o cuidado de tentar afastar a conotação sexual de um acontecimento, ele inadvertidamente acaba atraindo a atenção do leitor exatamente para esse aspecto ("Arion foi correndo, e com um salto montou em Valente. Agarrou-se na cintura de Halá, mas sem malícia."). Mais adiante, o interesse nascente entre Ádiler e Helá também evolui rapidamente para temperaturas bastante sensuais.


Tudo isso dá um tempero especial à história, tornando-a mais divertida, mas existem alguns problemas que considero imperdoáveis. O primeiro, e quanto a isso sou chato mesmo, é que uma revisão um pouco mais cuidadosa evitaria erros de edição graves, inclusive no uso da crase. Também no caso de Nábia e Ostes, as únicas personagens que curiosamente falam em segunda pessoa, observei que em pelo menos um momento ambas "escorregam" na conjugação. Na página 109, uma cena sensual entre Luredás e Neara salta bruscamente e sem aviso para uma cena sensual entre Arion e Ariádan. Precisei voltar atrás e reler, pois me pareceu que havia perdido uma parte do texto. Em termos de enredo, a desidratação de Ariádan na primeira parte da viagem me pareceu absurdamente acelerada, inclusive porque tudo sugere que os personagens acompanhavam o curso de um rio. Também me soou estranho que, num mundo que apesar de medieval parece haver todo um cuidado com questões éticas e morais (obviamente adequadas aos parâmetros locais), seja encarado com naturalidade pela maioria das pessoas um sacrifício humano e uma cena de necrofagia realizados em público e em plena luz do dia. Algo que me pareceu uma anacronia foi a definição de uma personagem como "enfermeira", sendo que em nosso mundo esse termo só começa a ser usado a partir do século XIX, depois de Florence Nightingale. E mais ao final, um personagem retira um arco de dentro da própria roupa (!), que precisa ter tamanho suficiente para lançar uma flecha e atingir outro personagem que tenta fugir a galope.


Mas como eu disse no princípio, a grande maioria dos problemas e deslizes podem ser solucionados com o simples amadurecimento de Eric Musashi, em idade e como escritor. Uma coisa é certa: "Os Herdeiros dos Titãs" proporciona uma leitura agradável e muito divertida. O público juvenil, sobretudo, apreciará demais essa leitura. A complexidade do mundo criado pelo autor é impressionante, e percebe-se nas entrelinhas um amplo trabalho de pesquisa, principalmente nos aspectos mitológicos. Ao final do livro a maior parte das principais questões fica solucionada, mas restam os inevitáveis ganchos para pelo menos uma continuação. Faz-se necessário, por exemplo, um retorno às personagens deixadas para trás, e a campanha de conquista que se descortina pela frente. O mistério por trás da rainha-deusa e seus Encapuzados permanece, embora (salvo engano) o livro já deixe pistas significativas para o que está por trás desses personagens.


Uma coisa é inegável: ao contrário do meu pobre mundo de Gardja, Eric Musashi conseguiu piublicar seus "Herdeiros..." numa bela edição de linda capa e elevada qualidade gráfica. O que virá a seguir depende quase somente de sua perseverança, e no pouco contato (virtual) que tive com o autor, me parece que perseverança é o que lhe sobra. Por isso acredito que este livro é algo de que ele deve se orgulhar muito, e minha aposta é de que, no futuro, esses motivos de orgulho seráo ainda maiores.


8 comentários:

  1. Grande Flávio!

    Bela resenha. Generosa no geral, cortante onde deve ser.

    Muito boa.

    Ahn... Será que rola algum dia uma resenha de "O centésimo em Roma"?

    Abração.

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  2. Grande Max! Vai ser um prazer. Me aguarde...
    Abraço!

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Bela resenha, Flávio.
    Sobre os dois deslizes em segunda pessoa, até suspiro aliviado ao saber que são só dois, rs. Em Guerra dos Tronos achei tantos que não fui capaz de enumerar.

    Aquele problema da cena sensual de Luredás e Neara passar para outra cena sem corte foi erro da editora. No original, havia espaço, e nas próximas impressões também haverá. Não só ali, como em vários outros trechos.
    Mas publiquei com eles, o leitor não tem nada com isso, e assumo o erro.

    Por fim, meu livro não é medieval. Você disse isso em vários lugares da resenha, até para apontar como um povo cheio de valores éticos acharia natural um sacrifício com antropofagia durante o dia.
    Contudo, eu não gosto do período medievo, e me baseio quase que exclusivamente em antiguidade. Sem contar que talvez tenha passado batido, mas os costumes variavam de região a região, havendo poligamia no Poente, prazeres de poucos exceços em Jatitã, e todo o circo de horrores de Catebete. E não deve ser desconsiderado o quanto Arion e Halá consideram tudo aquilo horrendo. Num país de descentralização política, pouco se sabia o que acontecia em cada cidade - e mesmo os impostos eram defasados, mascarados de acordo com o interesse.

    Enfim, recebo muito bem sua resenha. É legal receber elogios de um escritor - acredite, são os maiores críticos, rs -, sobretudo de um livro que escrevi há 7 anos, e que hoje reconheço que está aquém de outras obras posteriores.

    Abração!

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  5. OK, Eric! Como eu disse, pau na máquina, que escrever é 90% transpiração, e 10% inspiração. Você, como eu disse, tem talento.

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  6. Boa resenha!
    Apontou pontos e se justificou!
    Sei que é difícil resenhar e ser justo, imparcial, mas vc tá de parabéns!
    Eric é um amigo e escreve bem, mas teve falhas, como foi apontado. Acho q isso torna o livro ainda mais humano e real, pois se fosse perfeito, não me teria graça.


    Abraços.

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  7. Não li o livro, mas fiquei curioso sobre essa discordância entre o resenhista e o autor sobre se é "fantasia medieval" ou não. Por que o Flávio leu o livro como fantasia medieval? Por que o Eric acha que não é?

    Se a razão de não ser é porque o cenário não é propriamente medieval, bem, o de "Senhor dos Anéis", paradigma do gênero, também nada tem a ver com a Idade Média real. Quando é que um texto deixa de ser fantasia medieval para ser fantasia pura e simples?

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  8. Então, Antonio, eu também achei curioso Flavio julgar o livro como medieval. Talvez por ele ter um arremedo de economia e o governo ser descentralizado, mas isso é característica de diversas épocas que não são medievais. O Japão Feudal, por exemplo (que me inspirou), mas também a Pérsia em mais de um período.
    De resto, o livro não tem nada que me lembre do período medieval. A sociedade é simploriamente dividida em duas camadas: civis (que produzem) e militares (que governam, de acordo com seus postos). A cavalaria não tem papel de destaque, e, em muitos aspectos, se lembra da idade do bronze (embora haja trabalho do ferro). Ao invés de livros, pergaminhos; ao invés de calças, túnicas.
    Eu poderia fazer um megapost com cada elemento que me lembrasse, mas não creio que seja necessário. E o pior é que essa concepção medievalista levou o Flavio a criticar o sacrifício e a antropofagia em Catebete, quando minha influência maior foi, na verdade, a Antiguidade. Nem mesmo imobilidade social há: Téoder, o personagem principal, tornou-se militar (e, mais tarde, Béli-Mor, chefe máximo dos exércitos) após assassinar soldados que tentavam estuprar sua mãe. Ele era civil, o que mostra que ascendência não é lá tão importante no cenário.
    Mas não culpo o Flavio: Os Herdeiros dos Titãs é algo realmente muito diferente do padrão. Outra resenha disse que abordo temas infrequentes na fantasia, como insatisfação social, questionamento religioso e a miséria das pessoas comuns. Primo pela verossimilhança, e por isso, por exemplo, uso expressões coloquiais, e me afasto da pomposidade dos épicos. Quando descrevi, por exemplo, Arion rindo de uma situação de perigo, dizendo que "daria uma bronca" em Nagos, julguei que usar "repreenderia" fugiria do tom adequado para o momento, regado a vinho e festejos. Escrevemos sobre romanos falando com uma pomposidade que era a fala diária deles.
    Só discordo quanto à palavra "enfermeira". A arte surgiu em templos da Grécia Antiga, e, tecnicamente, se relaciona com o termo "enfermo". Não vejo problema em seu uso.

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