domingo, 19 de junho de 2011

O Preto, o Branco, o Cinza e os Genes

Aviso: contém spoilers!




Nos anos 60, o genial Stan Lee (et cols.) dava uma nova roupagem àquela que Isaac Asimov já havia chamado de "Síndrome de Frankenstein", ou o medo daquilo que é diferente de nós, transferindo essa situação para o coletivo da sociedade quando criou os "fabulosos X-Men". Os jovens mutantes, que "juraram proteger aqueles que os temem e odeiam" (aka NÓS, os humanos!), exibiam através desse subtítulo-slogan a nobreza e o desprendimento que os credenciavam a se chamarem de "herois". Na virada do século, nunca a metáfora de Lee foi tão verdadeira e contemporânea, no momento em que nos defrontamos, em todo o mundo, com as guerras étnicas e religiosas, e com o ódio e a violência decorrentes da discriminação racial e/ou sexual.




O filme "X-Men: First Class", agora num cinema perto de você, costura ideias já divulgadas nos quadrinhos com pequenas inovações no cânone, para relatar a origem do grupo underground de mutantes, tendo como pano de fundo o conhecimento mútuo, a amizade e finalmente o rompimento dos dois maiores mentores da raça: o Professor Charles Xavier e Eric Lensherr, o Magneto.




Antes de assistir o filme, possivelmente devido à atualidade do tema (embora a trama ocorra nos anos 60), ouvi mais de um comentário no sentido de que este era o "melhor filme dos X-Men". Com efeito, a caracterização e evolução dos personagens é consistente, divertida e, acima de tudo, respeitosa para aqueles que já eram fãs das histórias em quadrinhos. A trama se revela inteligente, na medida em que aproveita um fato histórico real, a Crise dos Mísseis Cubanos que, na década de 60, quase atirou o mundo numa Terceira Guerra Mundial, inserindo os mutantes da ficção como personagens coadjuvantes do drama e protagonistas do fim da crise. Usa, inclusive, imagens reais e discursos verdadeiros do presidente John F. Kennedy veiculados pela mídia da época. Para os fãs, um bonus impagável é a participação especialíssima de Wolverine no filme, interpretado pelo ator que já se uniu indissoluvelmente à sua imagem, Hugh Jackman.




No entanto, um comentário em particular de um colega, antes que eu visse o filme, me chamou a atenção a ponto de eu dar um foco especial ao aspecto abordado. Ele disse: "Cara, eu comecei até a torcer pelo Magneto...(pausa)... se bem que ele fez umas coisas muito erradas."




Se você prestar bem atenção, vai notar que "X-Men: First Class" retrata a transição entre a ingenuidade dos anos 60 e a complexidade dos julgamentos dos dias atuais. No início você tem uma ideia clara, claríssima, de quem são os mocinhos e de quem são os vilões: nazistas X judeus, americanos X russos, mutantes maus X mutantes bons. Tudo preto no branco. No meio disso cresce a figura de Eric Lensherr (futuro Magneto), vítima do Holocausto que vê sua glória pessoal emergir do horror, e transita pela linha escorregadia entre o certo e o errado movido pela dor e pelo ódio. Sua lenta e sofrida redenção ocorrerá pelas mãos generosas do amigo Charles Xavier, que primeiro salva sua vida e depois dá mostras de que salvará sua alma. No final do filme, porém, quando se afasta a ameaça do inimigo mais óbvio, o espectador percebe, estupefacto, que não existe mais preto nem branco. Tudo são, na verdade, tons de cinza. No momento em que Magneto finalmente toma a decisão a respeito de seu caminho, até mesmo o nêmese Xavier é obrigado a admitir que ele tem razão em seus argumentos. A verdade que surge, quando americanos e russos deixam de ser adversários ideológicos irreconciliáveis para se tornarem uma coisa só, a Humanidade, e quando o governo americano deixa claro que o conceito de aliado ou de adversário é apenas uma questão de conveniência momentânea, é de que há diversas maneiras de se encarar uma realidade e de reagir a ela. Aos jovens mutantes, no momento da cisão definitiva, é inclusive permitido o uso do livre arbítrio: ouvir as argumentações de cada facção e escolher o caminho a ser seguido.




Essa ambiguidade quanto ao certo e ao errado já existe no mundo das histórias em quadrinhos de super-herois já faz algum tempo. O entendimento de que o certo e o errado existem dentro de cada um, e de que cada ser está permanentemente tentado a seguir por um caminho ou por outro dependendo dos estímulos a que seja mais suscetível, é o que elevou às alturas a popularidade dos chamados "anti-herois", ou herois de moralidade ambígua, como é o caso do Justiceiro e de Wolverine (Marvel), do Lobo (DC) e de John Constantine (Vertigo), por exemplo.




O mal, na Criação, é relativo. Sua existência se explica na medida em que na Natureza as coisas se definem a partir dos opostos: a escuridão é a ausência de luz, a doença é a ausência de saúde, a morte é a ausência de vida, e estamos todos os dias nos defrontando com essas realidades em variáveis tons de cinza. Citando outra clássica (e espetacular) obra dos quadrinhos da linha Vertigo, Sandman, recordo-me de uma historia onde a Morte (uma linda mocinha dark, irmã mais nova do Sonho), é interrogada por um outro personagem a respeito do sentido de sua (a dela) existência. A Morte responde: "Como você iria saber o que é um dia bom, se nunca tivesse tido um dia ruim?"




Citei esse exemplo e tratei de forma mais ampla dessas questões no meu primeiro romance publicado, Quintessência, que você certamente já leu.




Mas no momento atual, ao assistirmos "X-Men: First Class", nos salta aos olhos o seguinte fato: quando Magneto faz pararem no ar os diversos mísseis lançados pelas duas esquadras humanas, como uma Espada de Dâmocles da era atômica, e os lança de volta contra os navios que esperam impotentes como "sitting ducks", no melhor uso possível da expressão original em inglês, você, espectador, se pega torcendo por Magneto! Mas como pode ser? Você, humano (até prova em contrário), torcendo contra a Humanidade e a favor dos mutantes?! O que acontece de verdade é que você, diante dos fatos expostos, não está torcendo pelos mutantes; está torcendo pela justiça. Numa questão de minutos sua observação recolheu os elementos de juízo oferecidos, entendeu, analisou, e sua razão emitiu o veredito. Assim você tomou o partido dos "filhos do átomo". E no mundo real da luz, das sombras e dos tons de cinza, acontece igual.




No momento de tomar partido entre o grupo de Xavier e o de Magneto, o problema se repete de forma mais sutil: diante dos fatos, qual plano de ação futura é o melhor? A violência e a intolerância presentes nas entrelinhas do discurso de Lensherr nos parecem perigosas; porém, a ideia de bondade cristã de Xavier, dar a outra face a quem nos estapeia, já nos parece fora de moda e inoperante.




Em conferência pronunciada no mês de maio de 1940 (portanto, durante a Segunda Guerra Mundial), o humanista argentino Carlos Bernardo González Pecotche disse o seguinte:




"Esta tragédia que estamos presenciando nos mostra, também, o que podem fazer as legiões dos maus pensamentos, quando estão unidos, se as forças do bem, mesmo sendo mil vezes superiores, estiverem desunidas. E eis, então, como se cimentou na mente dos homens um falso conceito: o de que basta ser simples e bom no significado comum da palavra, e que esse pensamento de bondade seja pacífico e suave em todos os aspectos que ela apresenta. Se os homens são conscientes de que possuem, por exemplo, valores mentais como os que acabo de citar, eles precisam saber que, para conservá-los diante do mal, devem ao mesmo tempo contar com pensamentos enérgicos, dotados da energia necessária para que possam construir uma completa defesa para si mesmos e um auxílio para as mentes de seus semelhantes."




Para solucionar satisfatoriamente a questão, portanto, seria o caso de ter bem claro: quais seriam esses "valores mentais" que merecem ser conservados e defendidos? E o mais importante: como "ser consciente" de que se os possui? Afinal, como bem destacou Magneto, e de acordo com a jurisprudência criada pelo Tribunal de Nuremberg, o argumento de que "eu só estava seguindo ordens" não é apenas inválido, mas perigoso. No nosso dia a dia, a cada atitude tomada ou juízo emitido, seria o caso de se perguntar: ordens de quem?




Mas isso é tema para outro filme...

4 comentários:

  1. Amigo Flávio, julguei haver produzido uma resenha interessante sobre esse filme, mas me curvo diante de tal análiase com a humildade de quem encara uma visão além do visível.

    PARABÉNS!!!

    Maciste.

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  2. Grande Maciste! Valeu, rapaz! Continue conosco! Abração!

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  3. Querido oftalmo,

    ontem assistimos ao filme e a mamãe lembrou imediatamente da sua resenha. Tendo estudado bastante esse argumento de apenas seguir ordens (por conta de uma pesquisa sobre hannah arendt e a banalidade do mal), além da jurisprudência a meu ver ilegal por parte do tribunal de exceção formado em Nuremberg, também me peguei pendendo para o lado de Magneto, mas somente para acabar considerando-o um ingrato, frase que eu repeti diversas vezes ao longo do filme. Afinal, por que gostamos de tratar mal aos que nos ajudam? Ou será que quem ajuda, no caso, "êquiszâivier, o prof dos xismên", é que na verdade está fazendo um mal?

    ó céus, ó tempestade, que dúvida cruel.

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  4. Pra você ver, Liloca, que há mais coisas por trás dos Xismên do que supõe nossa vanfilosofia...rs*

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