domingo, 30 de dezembro de 2012

Os Cinderelos de Chuteiras


 
 

     Você pode até começar a protestar desde já, principalmente após ver as imagens delicadas que ilustram esse tópico, dizendo que “isso não é esporte, isso é ignorância”. Ou coisa pior. Não, não vou morder a isca. Pretendo tentar levar a reflexão sobre o tema a um nível um pouco mais amplo e profundo.
     Ontem fiquei até as quatro horas da matina acordado, esperando pela luta na qual Júnior “Cigano” dos Santos, um dos atuais ídolos nacionais do esporte, defenderia seu cinturão de campeão numa revanche contra Cain Velásquez, o estadunidense de ascendência mexicana de quem o brasileiro arrebatou o troféu em novembro de 2011.
     Os comentaristas do Sportv não eram capazes de conter o espírito torcedor em prol de uma neutralidade profissional que favoreceria uma análise mais técnica da luta vindoura (e um constrangimento menor depois do que se viu). Na luta preliminar, um combate digno de uma arena romana de gladiadores, protagonizado por Jim Miller X Joe Lauzon, deixou o octógono literalmente salpicado de pocinhas de sangue. Um comentarista não resiste: “Que esta seja a luta mais bonita da noite, desde que Cigano ganhe logo por nocaute.”
     Cigano entra no ringue com seu futuro algoz. Começa a dança da esquiva, enquanto Velásquez avança sobre ele como se fosse o último prato de feijão da face da Terra. Os comentaristas, coitados, explicam: “Espera até o Cigano encontrar a distância correta”; “daqui a pouco ele entra no ritmo”...
     Cigano é incapaz de manter os braços erguidos, mantendo uma guarda adequada. Escapa pelos cantos do octógono, o olhar perdido, inexpressivo. Apanha repetidamente no rosto, golpes certeiros que lhe deixarão, ao final do suplício, um olho fechado e um beiço mais parecido com uma tromba. Parece cansado. Mais sonolento do que eu. No primeiro round, leva um soco direto no rosto que, talvez seu ato mais admirável na luta inteira, não resultou em nocaute. No final, um chute no pescoço deixará a mesma impressão, a despeito do nosso espanto (e dos comentaristas sem graça) de que a luta ainda não tenha terminado rounds atrás. Com nocaute do brasileiro, claro. O treinador desesperado, nos intervalos da pancadaria, ecoava a voz de toda a torcida: “Levanta essa guarda!“, “se imponha!”. Tudo inútil. Cigano não lutou, apanhou miseravelmente, essa é a verdade.
     Ao final melancólico, surge a pergunta: “O que aconteceu?” Começarão as famosas teorias da conspiração, é claro: “Ah, isso foi para forçar uma terceira luta, um tira-teima! É tudo grana!” Pessoalmente não acredito nisso, mas sinto uma incômoda familiaridade nessa sensação pós-luta, que mistura frustração, tristeza e estupefação. Não foi o que você sentiu, por exemplo, após a final da Copa do Mundo de Futebol na França? Ou na mais recente Olimpíada, após a eliminação do futebol brasileiro (machos e fêmeas)? Ou após o fiasco de grandes esperanças de medalha, como Fabiana Murer?
     O atleta profissional brasileiro ocupa uma posição ingrata. Por um lado, tem uma das torcidas esportivas mais apaixonadas, e que mais cobram resultados. No Brasil, todo mundo sabe disso, o segundo lugar é o primeiro dos perdedores. Por outro lado, tem entidades esportivas, desde as políticas até os clubes, cujo verdadeiro apoio ao esporte está, sabidamente, abaixo da crítica. Enquanto escrevo essas dolorosas linhas, o Flamengo acaba de anunciar a extinção de sua equipe de natação; nossos maiores nomes da modalidade, principalmente o multimedalhista Cesar Cielo, estão sem clube a partir de 2013. Imagine-se diante duma pressão desse tipo. Você tem que ir lá e trazer a pele do leão, “duela a quien duela”. Nossos esportistas batalham por suas especialidades, só para generalizar o que é a regra, sem dinheiro, sem patrocínio, sem material de treinamento, sem planejamento, e o pior de tudo, sem um apoio psicológico decente, presente em qualquer potência mundial dos esportes, que permita ao indivíduo suportar a carga de seu desafio profissional, acrescida de alguns quilos de inseguranças pessoais, e algumas toneladas de cobranças da torcida e da mídia. Não será por isso que, na hora H, nossos atletas amarelam num tom mais doentio e fosco do que o da adorada Seleção Canarinho?
     O que aconteceu realmente com Ronaldo na França? Onde estava Neymar em Londres? Fabiana Murer arregou em meio à corrida para o segundo salto, e não pulou mais. Colocou a culpa no “vento”. OK. As demais atletas saltaram normalmente. Que redemoinho maldito era esse, que só ventava nela?????
     Talvez as autoridades competentes não se apressem em mudar essa situação porque sabem muito bem que nós, brasileiros, adoramos um Cinderelo de Chuteiras. Domingo no Fantástico: o menino pobre da favela, que saiu da miséria com o sacrifício da família, contra tudo e contra todos, e se transformou num ídolo do esporte nacional! Com narração de um locutor de voz bondosa e sonhadora, e depoimentos lacrimosos de pais, mães e treinadores de várzea. Quem descobre talento esportivo em categoria de base, no Brasil, é empresário garimpeiro que está preocupado com os ganhos pessoais. O sonho do brasileiro comum é ver seu ídolo naquele menino descalço que jogava num campinho de terra, e foi avistado pelo grande time profissional enquanto o ônibus se deslocava para o estádio. “Opa, coloquem aquele moleque para dentro, que vai ser nosso próximo centroavante!”
     Desde o Jeca Tatu, e o sertanejo, que é antes de tudo um forte, a mentalidade brasileira venera essa versão ingênua e estereotipada da “jornada do herói”, de Joseph Campbell: o pobrezinho que supera as dificuldades da vida comum, quanto mais, melhores, e vira um sucesso. Nossos atletas são, de preferência, encarnações desse conto de fadas deturpado.
    
   


     Apesar disso (e talvez exatamente por isso) não perdoamos quando um Cigano da vida sobe ao ringue e não luta. Miller e Lauzon, na luta anterior, foram aplaudidos de pé pela audiência. Os dois homens queriam ganhar. Mostraram isso a preço de sangue, literalmente. Até o fim. Cigano subiu e apanhou pacientemente até o final do quinto round, embalado pelo som de uma audiência inteira que gritava seu nome em sinal de apoio. Até o fim. Nada disso o comoveu.
     Júnior Cigano nos deve uma explicação, que não seja o vento: que sua mãe foi sequestrada, e seria morta se ele não entregasse a luta; que acabava de descobrir que sua namorada o traía com o Minotauro; que estava com uma simples e prosaica caganeira. Desculpe, Cigano, mas fiquei até as quatro da matina para vê-lo lutar. Pelo menos lutar! Diferentemente da maioria dos brasileiros, que só aceita o lugar mais alto do pódio, confesso que senti falta de ver seu esforço. Um pouquinho que fosse, e não ver isso foi deprimente. O Cinderelo de Chuteiras pode ser um sonho ingênuo e quimérico, mas o que você me proporcionou, como exemplo de atleta, foi infinitamente mais inacreditável. E, como foi real, assustador.  
     Mas, como eu disse, deixo o benefício da dúvida. Pode ter alguma explicação decente. E que seja boa, porque nossos meninos do esporte carecem muito de bons exemplos, não só de vitória, mas de luta. Sabe o que é? É que vem aí uma Olimpíada no Brasil. E vocês não vão ter grana, nem apoio oficial, nem planejamento, mas o que todo mundo quer, na verdade, é muita medalha. Perto do que vejo no horizonte, amigo Cigano, o que o Velásquez lhe fez vai parecer um beijo de mãe.




 

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