quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Os Mortos, os Vivos e as Mídias


Spoilers(?)

"Vocês os veem aí fora. Sabem que, quando morrermos, nos transformaremos naquilo. Acham que nos escondemos atrás destas paredes para nos protegermos dos mortos-vivos! Não entendem? Nós SOMOS os mortos-vivos!" (Rick Grimes, TWD, livro 4) 

     Você tem aquele amigo de infância. Aí vocês vão crescendo, e conhecendo outros amigos. De repente, aquele amigo de infância começa a evitar você. Ele agora anda com um pessoal mais cool, e você... bem, você não é. “Mas como assim?”, você quer saber. E a nossa amizade? “Bom, o tempo passa, as pessoas mudam”, explica seu grande amigo cool. Talvez lá no fundo ele nem sinta isso de verdade, mas está gostando de ser cool. E de ter novos amigos cool. Ele tem uma nova zona de conforto cool na vida, e prefere deixar assim do que trocar o certo pelo duvidoso. Ou pelo antigo. E correr o risco de ser expelido do mundo cool. Ele prefere ser redefinido pelo meio que o cerca, e que se dane o que um dia pensou ou sentiu. Você? Acaba mandando o amigo ir tomar conta dos seus cools, e la nave va...

     Acredite, a série “The Walking Dead”(TWD) é sobre isso. Isso e um monte de outras coisas interessantes para se pensar a respeito. Na verdade existem duas séries: a original, em quadrinhos, criada e orquestrada por Robert Kirkman, que já conta, até a data presente, com nove livros publicados no Brasil pela editora HQM; e a série de TV, com duas temporadas já em DVD e uma terceira em exibição (produzida por Frank Darabont).

     Como de hábito faço com as produções que mais me atraem, esperei o final de cada temporada para adquirir a série em DVD, e assisti as duas temporadas em ritmo de maratona. Ao final, acometido por uma certa síndrome de abstinência, resgatei da MIPCPL (Monumental e Interminável Pilha de Coisas Para Ler) os nove volumes publicados por aqui, e li em sequência.

Há semelhanças empolgantes e diferenças cruciais entre o original em papel e a versão live action da TV. Longe de ser motivo de protesto, isso serve para observar com clareza as diferenças entre as mídias. Tem coisa que funciona em papel, mas que simplesmente não cabe na telinha, e vice versa. A diferença fundamental, que origina todas as outras, é a seguinte: na literatura, você sempre acompanha uma história sob o ponto de vista de alguém. Mesmo nas obras com narrador onisciente, narradas em terceira pessoa, sua percepção passa pelo filtro de algum personagem, ou em última instância do autor. Isso dá margem a que surjam obras interessantíssimas. Em “Entrevista com o Vampiro”, Anne Rice conta a história pelo ponto de vista do personagem Louis. No livro seguinte da trilogia, “O Vampiro Lestat”, é o personagem que dá nome ao livro quem narra a mesmíssima história do primeiro volume, dando ao leitor uma perspectiva complementar e muito diferente diante dos mesmos fatos. Já brinquei com esse recurso em um conto chamado “Efeitos Adversos”, publicado na antologia “Paradigmas 2” (Tarja). Atualmente, George R.R. Martin, nas “Crônicas de Gelo e Fogo”, também usa esse recurso com maestria, com seus capítulos narrados por diferentes personagens. Já a mídia visual, o cinema ou a TV, não tem essa perspectiva “interna”. Ela é totalmente “externa”, focada na ação. No caso da TV, em especial, também se foca na concisão e na velocidade. Na TV você não tem o acesso a profundas e prolongadas reflexões de um personagem. Se acontecer, fica muito chato! Na TV você mostra a cena, e o espectador capta, filtra e deduz. Cabe ao diretor induzi-lo à percepção ou ao sentimento que ele deseja. Os quadrinhos transitam entre essas duas mídias; ora é visual, ora pode se dar ao luxo de ser mais intimista, através de diálogos ou recordatórios. A despeito disso, falando especificamente da adaptação para a TV de TWD, destaca-se em alguns pontos o talento dos roteiristas, tornando algumas coisas mais verossímeis que as que vemos na HQ... embora nesta, pela própria facilidade propiciada pela mídia estática e estilizada, o autor possa levar algumas cenas, especialmente no que se refere à violência, a níveis que a TV não ousa.
 

     “The Walking Dead” conta a história do xerife Rick Grimes, de uma pequena cidade do Kentucky (USA), que é baleado em ação e fica em coma durante semanas. Quando acorda, depara com um mundo bastante diferente daquele que conheceu: nada menos que um “apocalipse zumbi”. As pessoas mortas vagam de forma (aparentemente) aleatória pelas ruas das cidades em ruínas, à caça dos últimos sobreviventes humanos, de cuja carne se alimentam. O leitor/espectador não tem noção da dimensão da tragédia. Não há mais meios de comunicação. Não há mais governo ou instituições organizadas. Não se sabe se a “praga” atinge o país ou o mundo. Os humanos sobreviventes se organizam como podem, lutando dia a dia, solitários ou em bandos, pela própria sobrevivência: por um lado, buscando víveres e armamentos para se defenderem, ou esconderijos decentes. Por outro, fugindo dos milhares de zumbis, cuja mordida é o suficiente para provocar a morte e a transformação da vítima em um deles. O cenário é brutal, aflitivo, literalmente apocalíptico. Na TV, a trilha sonora (espetacular) só faz piorar as coisas.

     O mais interessante da série, seu “nervo motor”, é exatamente o seguinte: o que nos torna humanos? O que chamamos de humanidade, civilização ou, simplesmente, “aquilo que sou”, é determinado pelo ambiente ao meu redor e pelas forças que atuam nele, ou por sólidas convicções internas? São exatamente as perguntas que estão na raiz da ideia por trás de meu primeiro romance, “Quintessência” (Monções). Em TWD, os zumbis são apenas parte do cenário, mas uma parte fundamental, são o elemento que impulsiona os seres humanos e que ao mesmo tempo os limita, fazendo emergir “a fórceps” o que de fato existe dentro da cada um. Sem a maquiagem da civilização, das regras e convenções sociais, e dos “politicamente corretos” da vida, cada um passa a ser o que é ou o que consegue ser.

     Observei que cada temporada da série da TV acompanha aproximadamente o conteúdo de cada álbum lançado no Brasil, cada um destes compilando seis edições da revista original. Na primeira, acompanhamos o despertar de Rick Grimes no hospital, seu primeiro confronto com os zumbis, seu primeiro encontro com humanos, sua procura por sua família, o encontro do grupo que constituirá sua nova “comunidade”, a aventura no CDC (que não existe na HQ!). Na segunda temporada, a chegada do grupo à fazenda de Herschel, novos conflitos éticos e morais, e terminará com a chegada à penitenciária que lhes servirá de abrigo a partir do terceiro álbum da HQ. Algumas diferenças importantes: na TV, a existência dos dois irmãos Dixon, Daryl e Merle, que inexistem nos quadrinhos. Eles acabarão substituindo outros personagens originais em algumas tramas e relacionamentos importantes para a série. A “durabilidade” diferente de alguns personagens; antes de prosseguir, um aviso: esqueça George R.R. Martin, aquela “mocinha sentimental”; em TWD, mais do que nunca, evite se afeiçoar a QUALQUER personagem. Qualquer um! A pequena Sophia, por exemplo, acaba tendo uma sobrevida bem menor na TV, mas protagoniza uma cena que, na minha opinião, acaba sendo uma das mais terríveis da série até agora, diante do celeiro de Herschel. Outra coisa bem própria da mídia da TV: a economia de personagens, “enxugando” os roteiros, provoca diferenças fundamentais. Dale, que surge na trama como uma espécie de guardião da velha moral, acaba acumulando funções, na TV, com Herschel, que tem a mesma idade aproximada e as mesmas características. Ou seja, Dale vai “dançar” bem antes do que se esperava. Isso, se nos priva de seu romance com Andreia, por outro lado nos permite assistir com maior velocidade e clareza a transformação da moça, de mulher frágil com tendências suicidas a guerreira implacável. A família de Herschel nas HQs, composta de seis filhos (um no celeiro, cinco em casa...), acaba resumida na TV a duas filhas, uma mulher mezzo-falecida e um enteado, sem o menor prejuízo à trama. Pelo contrário, a simplifica e dá agilidade. É notável a sutil, porém importantíssima diferença entre o confronto final Rick/Shane/Carl nos quadrinhos e na TV. A cena na HQ, se transposta fielmente para a telinha, talvez fosse de uma violência excessivamente brutal para essa mídia, mesmo pelos padrões HBO. Na TV, entretanto, a pequena mudança na situação de Shane suaviza a cena o suficiente para ser empolgante sem ser agressiva, mesmo que com isso antecipe em uma temporada a descoberta de um aspecto importante da “fisiologia zumbi” que, nas circunstâncias originais, só seria descoberta depois, protagonizada pela filha de Tyreese. Ainda que esteja me poupando de assistir os episódios da terceira temporada na TV, seguindo minha filosofia descrita no princípio, outro dia assisti, por acaso, a cena do combate entre Michonne e o Governador, e tive idêntica impressão: na TV, mídia “em carne e osso”, a sequência foi amenizada no quesito violência, sem no entanto perder nada em qualidade. No entanto, tendo seguido a leitura até o nono volume, esse aspecto me deixa apreensivo. Até que ponto a TV será capaz de amenizar o que ainda está por vir? Se não leu, acredite: é chocante.

 

     Algumas referências que percebi, e aqui deixo claro que são suposições minhas, sem nenhum conhecimento do quanto se sustentam na realidade: Robert Kirkman me pareceu ser um fã de Indiana Jones, especialmente no filme “O Templo da Perdição”. A maneira como Rick Grimes encontra e se relaciona com Glenn, já no primeiro capítulo, remete diretamente ao relacionamento Indy/Shorty. Inclusive o visual de Glenn é praticamente idêntico ao do pequeno oriental do filme, a semelhança chegando ao mesmo boné de baseball. Também o chapéu do xerife Grimes, que o preserva a todo custo e o transfere, numa espécie de ritual de passagem, ao filho Carl, remete diretamente ao relacionamento de Indy Jones com seu adereço característico. Quanto ao Governador, seu visual nas HQs acaba sendo uma compilação do que devem ser os personagens que lhe delegaram seus traços psicológicos, configurando um dos mais terríveis vilões da ficção: um pouco de Vlad Tepes, um pouco de Capitão Gancho. Na TV, já vi que esse visual foi modificado radicalmente, adaptando o vilão aos nossos dias de bandidos bem vestidos, escanhoados e penteados, relegando sua alma negra ao que levam dentro. Vide Brasília no meio da semana.

     Em TWD, só os fortes sobrevivem. Às vezes, nem esses. Mas o que mais importa é: o que é necessário para não sucumbir à “praga zumbi”? Até que ponto devem ser mantidas as antigas convicções de um mundo que mudou radicalmente? Até que ponto é permitido negar a si mesmo? Pense nisso quando conhecer uma turma cool. Ou, em tempos de redes sociais, para incluir no texto mais uma mídia, a da internet, como se preservar da “dentada zumbi” que nos faz sucumbir à fatídica “adesão emocional” às causas virtuais de origem, intenção ou legitimidade mal definidas? Você tem o hábito de “curtir” ou “compartilhar”? Cuidado. Os mortos-vivos estão em toda parte, e um deles pode ser você.
 

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