“…And the boys go into
business
And marry
and raise a family
In boxes
made of ticky tacky(*)
And they
all look just the same,
There's a
green one and a pink one
And a
blue one and a yellow one
And
they're all made out of ticky tacky
And they
all look just the same.”
(*)Gíria Americana: uniformidade
monótona, frequentemente insípida ou medíocre
(Little Boxes – Malvina Reynolds)
Um amigo,
no Facebook, chama a atenção para um link de uma revista virtual, intitulado: “‘Amor à Vida’
é criticada por internautas por não ter nenhum ator negro no elenco”.
Clico no link e sou remetido à Revista
Afro, “Uma revista online de variedades sobre o universo negro (sic)”. OK.
O primeiro parágrafo da matéria (com
minhas reflexões entre parênteses) diz: “Na internet, um novo viral tem feito a
cabeça de internautas (gozado, não vi nada disso). Nas redes sociais (no
Facebook ainda não tinha visto até aparecer este link!) e em sites de
militância (ah, ok! Bingo!), circulam protestos dizendo que a TV Globo está
sendo racista em “Amor à Vida”. Os grupos se dizem discriminados porque há
personagens gays na novela, mas no elenco não há nenhum ator negro.”
Por mais que o artigo me sugira fortemente
uma manifestação organizada por um grupo em particular com pretensão de
divulgação ampla, ele é o exemplo prático de uma realidade que merece uma maior
reflexão.
Já foi observado, mais de uma vez, como a
repetição exaustiva de uma mentira lhe dá ares de verdade; ou como a repetição ad nauseam de um absurdo faz com que
pareça normalidade. Isso ocorre em intensidade multiplicada exponencialmente na
era da internet e das redes sociais, onde a velocidade de expansão do
pensamento no mundo mental/virtual me parece incalculável. Torna-se um problema
sério, portanto, quando vivemos à mercê de uma nova egrégora, uma “nuvem de
ideias” que interpenetra todos os ambientes e que se caracteriza, nesse caso em
particular, com os rótulos de “politicamente correto” e “patrulhamento
ideológico”. Como já dissemos num artigo anterior, pretende-se substituir
mudanças verdadeiras no pensar e no sentir das pessoas por uma “aparência de
mudança”, uma maquiagem hipócrita que não resiste a uma segunda demão de
profundidade em nosso modus operandi
cultural e social. É coerente, por sinal. Num mundo que cada vez mais prima
pela superficialidade e pelo efêmero, uma maquiagenzinha básica em nosso
jeitinho de ser pode parecer “boa para o gasto”. Mas será isso o que realmente
nos convém?
Voltando ao exemplo prático que iniciou
essas divagações, bradam os defensores da causa que as novelas deveriam
traduzir, necessariamente, com precisão, a realidade que vivemos. Algo assim,
como um documentário educacional para crianças do curso médio. Novelas como “Saramandaia”,
por essa linha de pensamento, nem pensar! Ora, nunca uma novela das nove teve
tantos personagens assumidamente gays. Então eles estão lá, felizes, se
divertindo diante da telinha e comendo pipoca. Mas peralá! Cadê os negros?
Começa aqui a discriminação. Sim, meus amigos, toda pressão em favor de um
grupo qualquer, seja ele branco, negro, amarelo ou verde (para que os aliens
não me acusem de discriminação por omissão), é discriminatório. Qualquer cota
que não siga a meritocracia com igualdade de oportunidades, independente dos
fatores históricos até que se invente a máquina do tempo, pois sobre estes não
temos domínio, é discriminatória. Um juiz de futebol que deixa de apitar um
pênalti legítimo no primeiro tempo não pode “cavar” um pênalti falso depois, a
fim de “compensar”. Isso nos parece ético? Parece moralmente aceitável, ainda
que venha após uma injustiça verdadeira? Não se gera, aqui, uma nova injustiça?
Corrigir erros na base do “olho por olho, dente por dente”, é primitivo.
Retrógrado. Se eu estiver falando contra o SEU grupo, é possível que não
concorde. Mas se vamos favorecer um grupo de cada vez, quando isso vai parar?
Qual o limite que determina a exatidão da compensação devida? Quem o
estabelece?
No caso da novela pretende-se associar, de
forma um pouco forçada, a credibilidade a uma suposta “exatidão na ambientação”.
O que nos impediria, no primitivismo de nosso século XXI sem sabres de luz ou
carros voadores, de nos emocionar verdadeiramente no primeiro momento em que
Darth Vader estende a mão e diz: “Luke, I am your father!”
Como autor, defendo até o fim meu direito
criativo em termos de obras de ficção. Mesmo que, nos divertidos anos 70,
Hollywood tenha nos brindado com os exageros do “Blaxploitation”, filmes com
uma explícita conotação racial pró-negros, que engoliu, em dado momento, o
próprio Drácula (Blackula, no caso). Jamais vi uma crítica decente de conotação
ideológica a esses filmes, apenas de ordem técnica. Simplesmente porque isso
não cabe, da mesma forma que é absurdo tentar impor “cotas” de personagens a
nossos autores de filmes, novelas, livros ou qualquer tipo de produto cultural
de entretenimento. Então teremos gays, e negros... espere, cadê o oriental? O
índio, que daqui a pouco se organiza em ONGs e vem descendo a borduna no cinema
nacional? Hipocrisia burra, que tende a diluir de maneira lamentável a
qualidade das obras em prol de um patrulhamento ideológico (arrá!) digno da
censura dos anos duros.
Posso falar disso com naturalidade. Lá
pelos anos 80s, um de nossos mais competentes vigilantes culturais, Braulio Tavares,
cunhou a inspiradíssima expressão “Síndrome do Capitão Barbosa”. Segundo ele,
em uma obra de ficção científica no estilo Star
Trek soaria ridículo, inverossímil, um comandante chamado “Capitão Barbosa”,
o que nos condenaria, pobres autores brasileiros, a copiar os moldes estadunidenses.
A verdade é que nós nos sentíamos assim, de fato. EU me sentia. Doente da
Síndrome até os ossos. Entretanto, os tempos mudaram. A internet encurtou as
distâncias do mundo. Mesclou produtos culturais de forma inédita. Em 2011,
senti que tinha me curado da doença. Para provar que isso era possível, escrevi
a noveleta “Pendão da Esperança”, que concorreu e conquistou seu lugar na
antologia “Space Opera” (Draco). Nessa história, a nave espacial brasileira “Estrada
Real” precisa deter uma ameaça alienígena superpoderosa, capaz de aniquilar a
própria vida no planeta Terra. Meu protagonista? O Capitão Barbosa. Um
brasileiro. Negro.
“Pendão da Esperança” foi muito elogiada,
e no ano passado ganhou o Prêmio Argos de “Melhor História Curta” publicada em 2011. Muitos
elogiaram a forma criativa como solucionei o conflito (UFA!). Mas percebi que
alguns destacaram como qualidade o fato de Babosa ser negro, ainda que,
levantada a dita lebre, outros viessem me perguntar: “Ele era negro? Não
percebi isso...”
O fato de Barbosa ser negro em nada
influencia a história, quero deixar claro. Não é panfletário. Ele poderia ser
branco ou oriental, com o mesmo resultado. ISSO. NÃO. INTERESSA. Barbosa era
negro porque nasceu assim, é algo natural, um brasileiro negro. E penso que
deveria ser assim, que as obras de ficção pudessem ter sua qualidade avaliada
com base em critérios artísticos, jamais ideológicos. A minha foi, graças a Cthulhu
(porque, se escrevo “Deus”, será que os ateus me massacram?). Em pleno século
XXI, quando as fronteiras físicas e econômicas começam a ruir cada vez mais, nossa
cultura parece insistir em navegar contra a corrente da evolução, criando
caixinhas que nos separam: caixinhas negras, brancas, idosas, jovens, crentes
ou ateias. Deixo para reflexão: nossos conflitos milenares não seriam
solucionados com muito maior facilidade se nos dispusermos a, simplesmente,
saltar para fora das nossas caixinhas?
Ah, esse politicamente correto...
ResponderExcluirGostei do artigo, Flávio.
Belíssima reflexão sobre os preconceitos que cercam nossa sociedade.
ResponderExcluirValeu, meninos! E vamo que vamo... :-)
ResponderExcluirFlávio, a sua preposição é falsa. Ninguém reclama de representatividade querendo impor uma linha única de criação (seja literária ou audiovisual) simplesmente mimética, realista. Seja aqui em ou em qualquer lugar, ou não teríamos esse tipo de discussão em relação à representatividade na Ficção Científica ou na Fantasia.
ResponderExcluirProdutos culturais são criados dentro de determinada realidade social. No nosso Brasil, creio que sabes, os negros são metade da população. 50,7% segundo o Censo 2010. Faz sentido uma novela que se passa na nossa realidade não ter UM negro em seu elenco? UM, apenas. Um. Metade da população e na novela passada em São Paulo dos tempos atuais... apenas brancos. Acho complicado fingir que isso é histeria de militantes ou coisas de patrulheiros ideológicos do politicamente correto. Há, ao menos, um livro (que originou um documentário) que trata da dificuldade de atores e atrizes negros e negras de conseguirem papéis em novelas, principalmente esses papéis não saem dos clichês de empregadas, babás, motoristas, bandidos. Enfim, é difícil pensar no Brasil e, simplesmente, fechar os olhos para metade da população e dizer que quem nota - e se incomoda - com isso é patrulheiro ideológico do politicamente correto.
Isso me lembrou duas coisas, duas publicações no tumblr: a primeira, de Greg Pak - http://greg-pak.tumblr.com/post/57875857460/t-funster-well-when-i-was-nine-years-old. A segunda, de Neil Gaiman: http://neil-gaiman.tumblr.com/post/43087620460/i-was-reading-a-book-about-interjections-oddly.
Lembrei porque quando se fala em "politicamente correto" eu penso que é apenas um pedido de tratamento de forma respeitosa para as ditas minorias. Perceber que existem negros no Brasil, e que existem atores negros que podem aparecer nas novelas, não deve ser uma coisa tão má, não é? E o textinho da Goldberg me lembra a importância de ter essas pessoas representadas. E além disso, elas fazem parte também da sociedade onde são produzidas essas narrativas.
Abraços.