Desde que escrevi “Casas de
Vampiro”, uma dúvida surgiu e persistiu em algum canto da minha mente; vez ou
outra, lendo algum texto, ela retornava, circulava e se recolhia frustrada, sem
uma resposta satisfatória. Penso que talvez alguns autores/leitores padeçam da
mesma inquietação: qual a diferença entre “horror” e “terror”? Afinal, essa
diferença existe?
Eis que, num dia feliz, deparo na
prateleira da livraria com “A Causa Secreta e Outros Contos de Horror” [2013 –
Companhia das Letras, 145 pg]. Livrinho bonito, bem editado, e uma olhada na
orelha já garantiu sua compra. Na lista de autores das histórias curtas, apenas
mestres, escolhidos a dedo!
O brinde inesperado veio na apresentação
da obra, logo no início, quando o autor do texto incluiu uma definição
absolutamente “matadora” da escritora gótica Ann Radcliffe, acerca da questão
que me atormentava como o abutre de Prometeu: “o terror e o horror possuem características tão claramente opostas que
um dilata a alma e suscita uma atividade intensa de todas as nossas faculdades,
enquanto o outro as contrai, congela-as e de alguma maneira as aniquila. Nem
Shakespeare nem Milton em suas ficções, nem Mr. Burke em suas reflexões, buscaram
no horror puro uma das fontes do sublime. Onde situar, então, essa importante
diferença entre terror e horror senão no fato de que este último se faz
acompanhar de um sentimento de obscura incerteza em relação ao mal que tanto
teme?”
Na minha concepção, como autor, percebi
que o que sempre busquei dentro do gênero foi o horror. Uma obra de terror pode
(ou não) evocar o horror. Este não exige a presença, no texto, de algum monstro
ou entidade sobrenatural, ou de alguma força misteriosa externa que represente
ameaça aos personagens. Com estes elementos, muito mais facilmente, se escreve “terror”.
A ameaça exógena deflagra no leitor uma versão psicológica da descarga
adrenérgica: “to fight or to flight”. Como encontrar um touro bravo no pasto, assim
nos ensinava o grande professor Ângelo Machado na escola de medicina. O “horror”,
por sua vez, exige mais habilidade. O monstro está, em essência, dentro da
mente. Ele precisa ser descrito com atos simbólicos, ou pensamentos bizarros.
Ele não morde, não mata, não suga sangue, mas pode levar sua incauta vítima a
fazer tudo isso. É preciso ser um bom escritor para escrever uma boa história
de horror, e passar essa sensação “aniquiladora” à mente do leitor.
Após a explicação teórica, o livro em
questão nos apresenta exemplos práticos espetaculares do bom Horror, assim
mesmo, com maiúscula.
“A máscara da Morte Rubra” [Edgar Allan
Poe] – O príncipe Prospero (supostamente uma “versão” do
personagem real que viveu na Espanha, nos anos 1600) reúne um “milheiro” dos
nobres e fidalgos locais em uma de suas abadias fortificadas, e ali estes permanecem
trancados, alheios e presumivelmente protegidos da “Morte Rubra”, uma praga
implacável que aniquila a população da região como moscas, de forma horrenda. Por
volta dos seis meses de isolamento, Prospero promove no castelo um voluptuoso
baile de máscaras para seus frívolos convidados. Aparte da bizarra decoração
dos salões para a festa, um personagem desconhecido, fantasiado de “Morte Rubra”,
provoca inquietação entre os presentes.
“A causa secreta” [Machado de Assis] – Garcia
conhece Fortunato, médico casado com Maria Luisa. A psicologia fascinante do
doutor o atrai irresistivelmente, e os paradoxos que resultam de suas atitudes
o confundem. Garcia torna-se íntimo do casal, e com o tempo começa a se
apaixonar pela esposa do amigo. Paralelamente a isso, uma aparente tensão no
relacionamento do casal o aflige. Quando a verdade vem à tona, pode ser tarde
demais.
“A selvagem” [Bram Stoker] – Um jovem
casal, em visita turística a Nuremberg, acaba conhecendo outro turista, um “cowboy”
americano que, numa brincadeira infeliz, mata acidentalmente o filhote de uma
gata, que o grupo encontra numa visita às ruínas do Kaiserburg. A fúria e o
desespero da felina os deixam chocados, e ela passa a segui-los pelas ruínas, a
despeito da pouca importância dada pelo assassino ao episódio. Este pode acabar
sendo um erro fatal.
“A mão” [Guy de Maupassant] – Um misterioso
inglês aluga uma propriedade isolada nos ermos da Córsega, despertando para si
a curiosidade da população do vilarejo próximo. Um juiz local, sentindo-se
responsável por força de seu ofício, decide aproximar-se do forasteiro para
saber mais sobre ele. O homem se revela como uma espécie de aventureiro, que
tem entre seus diversos troféus de peripécias passadas uma mão mumificada presa
por uma corrente. Posteriormente, um acontecimento trágico cria uma linha tênue
que separa a imaginação e o sobrenatural.
“O rapa-carniça” [Robert Louis Stevenson] –
Dois
homens com um misterioso passado em comum se encontram acidentalmente, anos
depois, num pub inglês. Um deles relata sua história, dos tempos de estudante
de medicina, quando obter cadáveres para as aulas de anatomia era um sério
problema. Seu relato disseca, pouco a pouco, a alma humana, demonstrando como a
cobiça e a banalização da morte, associados, podem transformar homens em
monstros. Uma história com terríveis ecos contemporâneos.
“O cirurgião de Gaster Fell” [Arthur Conan
Doyle] – Um pequeno elenco se encontra inadvertidamente em um pequeno
povoado nos ermos da charneca inglesa: um aventureiro desiludido, uma jovem
encantadora dada a passeios noturnos misteriosos, um cirurgião eremita e seu
misterioso companheiro. A reunião desses elementos promete trazer à tona uma
história assustadora.
Essas histórias curtas merecem ser lidas,
por terem sido escritas, cada uma delas, por um mestre do gênero horror. A
despeito dos elementos datados, típicos dos textos do século XIX, que precisam
ser levados em conta, das páginas desse livro exalam exemplos eloquentes da
sensação de horror que, penso eu, todo escritor contemporâneo que se aventura
no gênero deve almejar. Para mim, um dos contos em particular foi altamente
inspirador, e deve se traduzir em um conto de minha autoria que, espero, logo se
concretizará em palavras escritas. Mas todos eles, sem exceção, representam uma
aula extremamente instrutiva sobre o que significa gerar “um sentimento de obscura incerteza em relação ao mal que tanto teme”.
Altamente recomendado, para
quem gosta!
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