domingo, 8 de dezembro de 2013

O horror! O horror!


     Desde que escrevi “Casas de Vampiro”, uma dúvida surgiu e persistiu em algum canto da minha mente; vez ou outra, lendo algum texto, ela retornava, circulava e se recolhia frustrada, sem uma resposta satisfatória. Penso que talvez alguns autores/leitores padeçam da mesma inquietação: qual a diferença entre “horror” e “terror”? Afinal, essa diferença existe?

     Eis que, num dia feliz, deparo na prateleira da livraria com “A Causa Secreta e Outros Contos de Horror” [2013 – Companhia das Letras, 145 pg]. Livrinho bonito, bem editado, e uma olhada na orelha já garantiu sua compra. Na lista de autores das histórias curtas, apenas mestres, escolhidos a dedo!
 

     O brinde inesperado veio na apresentação da obra, logo no início, quando o autor do texto incluiu uma definição absolutamente “matadora” da escritora gótica Ann Radcliffe, acerca da questão que me atormentava como o abutre de Prometeu: “o terror e o horror possuem características tão claramente opostas que um dilata a alma e suscita uma atividade intensa de todas as nossas faculdades, enquanto o outro as contrai, congela-as e de alguma maneira as aniquila. Nem Shakespeare nem Milton em suas ficções, nem Mr. Burke em suas reflexões, buscaram no horror puro uma das fontes do sublime. Onde situar, então, essa importante diferença entre terror e horror senão no fato de que este último se faz acompanhar de um sentimento de obscura incerteza em relação ao mal que tanto teme?

     Na minha concepção, como autor, percebi que o que sempre busquei dentro do gênero foi o horror. Uma obra de terror pode (ou não) evocar o horror. Este não exige a presença, no texto, de algum monstro ou entidade sobrenatural, ou de alguma força misteriosa externa que represente ameaça aos personagens. Com estes elementos, muito mais facilmente, se escreve “terror”. A ameaça exógena deflagra no leitor uma versão psicológica da descarga adrenérgica: “to fight or to flight”. Como encontrar um touro bravo no pasto, assim nos ensinava o grande professor Ângelo Machado na escola de medicina. O “horror”, por sua vez, exige mais habilidade. O monstro está, em essência, dentro da mente. Ele precisa ser descrito com atos simbólicos, ou pensamentos bizarros. Ele não morde, não mata, não suga sangue, mas pode levar sua incauta vítima a fazer tudo isso. É preciso ser um bom escritor para escrever uma boa história de horror, e passar essa sensação “aniquiladora” à mente do leitor.

     Após a explicação teórica, o livro em questão nos apresenta exemplos práticos espetaculares do bom Horror, assim mesmo, com maiúscula.

     “A máscara da Morte Rubra” [Edgar Allan Poe] – O príncipe Prospero (supostamente uma “versão” do personagem real que viveu na Espanha, nos anos 1600) reúne um “milheiro” dos nobres e fidalgos locais em uma de suas abadias fortificadas, e ali estes permanecem trancados, alheios e presumivelmente protegidos da “Morte Rubra”, uma praga implacável que aniquila a população da região como moscas, de forma horrenda. Por volta dos seis meses de isolamento, Prospero promove no castelo um voluptuoso baile de máscaras para seus frívolos convidados. Aparte da bizarra decoração dos salões para a festa, um personagem desconhecido, fantasiado de “Morte Rubra”, provoca inquietação entre os presentes.

     “A causa secreta” [Machado de Assis] – Garcia conhece Fortunato, médico casado com Maria Luisa. A psicologia fascinante do doutor o atrai irresistivelmente, e os paradoxos que resultam de suas atitudes o confundem. Garcia torna-se íntimo do casal, e com o tempo começa a se apaixonar pela esposa do amigo. Paralelamente a isso, uma aparente tensão no relacionamento do casal o aflige. Quando a verdade vem à tona, pode ser tarde demais.

     “A selvagem” [Bram Stoker] – Um jovem casal, em visita turística a Nuremberg, acaba conhecendo outro turista, um “cowboy” americano que, numa brincadeira infeliz, mata acidentalmente o filhote de uma gata, que o grupo encontra numa visita às ruínas do Kaiserburg. A fúria e o desespero da felina os deixam chocados, e ela passa a segui-los pelas ruínas, a despeito da pouca importância dada pelo assassino ao episódio. Este pode acabar sendo um erro fatal.

     “A mão” [Guy de Maupassant] – Um misterioso inglês aluga uma propriedade isolada nos ermos da Córsega, despertando para si a curiosidade da população do vilarejo próximo. Um juiz local, sentindo-se responsável por força de seu ofício, decide aproximar-se do forasteiro para saber mais sobre ele. O homem se revela como uma espécie de aventureiro, que tem entre seus diversos troféus de peripécias passadas uma mão mumificada presa por uma corrente. Posteriormente, um acontecimento trágico cria uma linha tênue que separa a imaginação e o sobrenatural.

     “O rapa-carniça” [Robert Louis Stevenson] – Dois homens com um misterioso passado em comum se encontram acidentalmente, anos depois, num pub inglês. Um deles relata sua história, dos tempos de estudante de medicina, quando obter cadáveres para as aulas de anatomia era um sério problema. Seu relato disseca, pouco a pouco, a alma humana, demonstrando como a cobiça e a banalização da morte, associados, podem transformar homens em monstros. Uma história com terríveis ecos contemporâneos.

     “O cirurgião de Gaster Fell” [Arthur Conan Doyle] – Um pequeno elenco se encontra inadvertidamente em um pequeno povoado nos ermos da charneca inglesa: um aventureiro desiludido, uma jovem encantadora dada a passeios noturnos misteriosos, um cirurgião eremita e seu misterioso companheiro. A reunião desses elementos promete trazer à tona uma história assustadora.

     Essas histórias curtas merecem ser lidas, por terem sido escritas, cada uma delas, por um mestre do gênero horror. A despeito dos elementos datados, típicos dos textos do século XIX, que precisam ser levados em conta, das páginas desse livro exalam exemplos eloquentes da sensação de horror que, penso eu, todo escritor contemporâneo que se aventura no gênero deve almejar. Para mim, um dos contos em particular foi altamente inspirador, e deve se traduzir em um conto de minha autoria que, espero, logo se concretizará em palavras escritas. Mas todos eles, sem exceção, representam uma aula extremamente instrutiva sobre o que significa gerar “um sentimento de obscura incerteza em relação ao mal que tanto teme”.

     Altamente recomendado, para quem gosta!

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