Antes de começar a ler,
saiba que esta crônica é a transcrição quase literal de um fato verídico.
Aconteceu comigo, no dia 23/4/15.
Necessitando de um demonstrativo de uma de
minhas fontes pagadoras para o Imposto de Renda, recorri ao site. Hoje em dia a
maioria dessas coisas se resolve “on line”, viva a ciência. No caso, porém, o
site me pedia um certo “código verificador” que eu não tinha. Conformado, fui
pessoalmente ao departamento de RH do hospital.
“Aqui não tem jeito”, me explicam. “O
senhor vai ter de ir ao posto UAI na Praça Sete.”
O “Posto UAI” é aquele lugar onde você
tira qualquer documento, paga multa de trânsito, etc. Um “Asilo Arkham Para
Criminosos Insanos” da burocracia. Estou no horário do almoço. Olho o relógio,
emito um suspiro e vou.
Passo pelo balcão de Informações. Sou
orientado a seguir por um labirinto de corredores de deixar o Minotauro doido, e
chego ao setor correto. O número da senha me desanima. Tem mais de vinte
pessoas na minha frente. Mas são muitos atendentes, então a coisa anda melhor
do que eu imaginava.
Mas tem os “preferenciais”. Já que ninguém
está ouvindo meus pensamentos, permito-me ser politicamente incorreto. Esse monte
de velho passando na minha frente faria sentido numa fila, de pé, sofrimento
justificado. Aqui está todo mundo sentado em cadeiras confortáveis. Tem ar
condicionado. Estou no meu horário de almoço, que se escoa dolorosamente. Esses
velhos vão sair daqui e voltar para casa. Ou entrar uma agência de banco para
bater papo com o caixa e atrasar alguma outra fila. Ou jogar dominó na praça.
Preferencial sou eu, caramba! Um velho passa exatamente na frente do meu
número, e o cabelo dele é menos grisalho que o meu.
Sou chamado ao balcão depois de uns quarenta
minutos.
“Um documento com foto, por favor”, pede a
moça, laconicamente. Apresento minha Identidade Profissional. Ela olha e torce o
nariz.
“Tem algum mais recente?”
“Moça, isso aí é minha identidade. Vale
até eu morrer.” Mostro a ela onde está escrito: “Documento de identidade nos
termos da Lei número 6.206/75”.
“Certo, senhor, mas temos ordens de não
aceitar documento com mais de dez anos de validade. O senhor não tem carteira
de motorista?”
Tenho, e mostro a ela, aliviado. Ela torce
o nariz de novo.
“Está vencida.”
“Como assim, moça?”
Ela me mostra. De fato, minha habilitação
venceu em 22/02/2015, e eu nem vi.
“Moça, tudo bem que está vencida, mas a
outra não vence. É minha identidade...”
“Infelizmente não posso aceitar, senhor.”
Começo a ficar nervoso.
“Tem alguém aqui com mais bom senso, com quem eu
possa falar sobre isso?”
“O senhor pode tentar na Coordenação,
descendo o segundo lance de escadas, o balcão de vidro.”
Vejo no olhar e no sorriso torto o que ela
está me dizendo com seus pensamentos: “Você jamais vai sair daqui hoje com esse
documento. Perdeu, playboy, cadê seu deus agora? Rá rá!”
Assim mesmo vou à Coordenação, onde sou
atendido por um gordinho simpático. Explico de novo o absurdo da situação:
“Essa é minha identidade, de acordo com
a...”
“Lei número 6.206/75. Sei.”
Desconfio que não estou fazendo uma
reclamação original. Isso não é bom.
“Infelizmente não podemos aceitar
documentos antigos. O documento serve para que se reconheça o usuário pela
foto...”
Coloco meu documento, foto para a frente,
do ladinho do meu rosto, junto ao vidro.
“Olha a foto. Olha para mim. Sou eu,
amigo.”
Ele faz beiço. Franze a testa.
“Hummm... Tem diferenças...”
“Que diferenças, companheiro? Sou eu,
claramente!”
“Hummm... O cabelo está mais branco.”
Lembro-me do velho de cabelos escuros que
passou na minha frente lá atrás. Deve ser veterano nesse hospício. Velho
maldito.
“Ah, seu eu soubesse que teria de vir aqui,
teria pintado os cabelos, mas foi uma coisa inesperada! Você tá de brincadeira,
né? E se eu fosse mulher? Mulher pinta e corta cabelo todo mês!”
“É, se fosse o caso, ia ter problema
também. O senhor precisa entender que isso é para sua segurança, para que
ninguém possa usar um documento seu para abrir uma conta no banco, ou...”
“Rapaz, eu só quero um demonstrativo para o
Imposto de Renda, só isso! É para pagar, não é para ganhar dinheiro nenhum! Vou
te dar meu cartão. Sou oftalmologista, vou te passar uns óculos e você vai ver
que este aqui sou eu!”
“O senhor não tem outro documento?”
Mostro a carteira de habilitação vencida.
“Ah, esse é o senhor! Viu? Não é questão
de óculos...”
“A diferença é que nesta foto estou mais
gordo. Só isso. Pode falar, não vou me ofender. Mais gordo. Esta serve, então?”
“Infelizmente
não. Como o senhor disse, está vencida.”
“Por dois meses, companheiro! Escute...
tem alguém mais razoável acima de você para conversar comigo?”
“Não senhor. O plantão sou eu e meu
colega.”
Ele aponta por sobre o ombro, para o rapazinho
cujo penteado, certamente, é para homenagear o Neymar. Duvido que seja o mesmo
penteado da sua carteira de identidade. Resolvo jogar a batata quente para ele:
“OK. Preciso desse documento para o IR. O
que você me sugere?”
“O senhor pode tirar uma nova via de sua
carteira de identidade...”
“Amigo, NÃO VAI DAR TEMPO! É para o fim
deste mês.”
“São cinco dias úteis para um documento
novo. Se o senhor for lá hoje...”
“Cara, vocês já comeram TODO o meu horário
de almoço! Tenho de trabalhar! Não posso ir lá hoje! Veja só: vou fazer uma
ocorrência policial. Se tiver problemas com a Receita Federal por causa dessa idiotice,
vou explicar que vocês é que se recusaram a aceitar minha carteira de
identidade...”
Ele se embatuca um pouco.
“Não, não, não precisa disso... Veja bem”,
segreda ele, aproximando-se e falando baixo: “O senhor pode usar uma procuração.”
“Como assim?”
“O senhor deve ter um advogado, ou alguém
que cuida de suas coisas. Faz uma procuração, reconhece firma no cartório, e a
pessoa pode pegar seu papel usando os documentos dela. Estou te dando uma dica
por fora da curva, entendeu?”
Olho para ele, sério. Ele não está
brincando. Incrível. Agradeço e vou embora.
Chegando em casa, comento o caso e ninguém
acredita. Mas minha cunhada, também médica, faz uma observação:
“Peraí, mas um tempo atrás o CRM mudou o
layout do documento, e trocou todas as carteiras. Tem de ter uma data de
expedição nova!”
Vou conferir, e é verdade. Do lado da data
de expedição original tem uma NOVA data de expedição do documento: 26/7/2012!
Não acredito que não me lembrei do detalhe. E que nenhum dos malditos daquela
repartição viu isso.
No dia seguinte, hora do almoço, retorno
ao Posto UAI. Decidi não mencionar o que aconteceu na véspera, pronto para esfregar
minha data de expedição na fuça do primeiro idiota que me questionar a respeito.
Dessa vez cheguei mais cedo, e só havia uns dez na minha frente. Poucos velhos também.
Promissor.
A moça que me atende, uma diferente do dia
anterior, me pede o documento com foto. Entrego a Identidade Profissional. Ela
olha a foto, olha minha cara, e nem questiona. Vai lá na impressora e volta com
meu documento para o Imposto de Renda, segundos depois.
Limito-me a descrever os fatos, porque não
sei o que mais comentar. Não sei o que dizer sobre essa sandice, além do que
aconteceu. E fiz questão de destacar, no início, que foram fatos reais. Se não
aviso, como escritor de ficção, vocês vão dizer que estou apelando na fantasia.
Não estou.
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