sábado, 17 de janeiro de 2015

A VOLTA DO VINGADOR

    - Eu não fiz nada! – ela protesta.

     - Criatura do inferno! – acusa um terceiro pescador, que manda com toda força um soco no estômago da menina. Ela se dobra e cai de joelhos, tossindo e chorando. O pescador que desferiu o soco dá um safanão no barrete frígio, entranha os dedos nos cabelos da coitada e a ergue num arranco. Ela grita de medo e agonia.

     ‘Não vou me meter’, pensa o homem. ‘Não vou me meter. Não vou me meter. Não vou me meter... Ah, foda-se.’

     O homem se levanta e caminha a passos medidos até o sacerdote itinerante.

     - Preces a Plutão pelos mortos! Preces a Plutão pelos mortos!

     - Quero encomendar uma prece.

     - O nome do falecido, qual é?

     - Não é um só – o homem avalia os pescadores: o mais barbudo tem uma faca no cinto. Dois carregam varas compridas com um gancho de ferro na ponta. E há um último aparentemente desarmado, embora bem mais forte que os outros. – São quatro.

     - Que lástima... Quais os nomes?

     - Não sei.

     - Quando foi que eles morreram?

     - Em breve.

     O sacerdote, confuso, observa com mais atenção o possível cliente e se assusta com os olhos dele, castanhos e fugidios como os de uma ave de rapina.

     - Posso fazer desconto para grupos – ele diz, quase gaguejando.

     - Tanto faz – rebate o homem, enquanto se afasta. – Não sou eu quem vai pagar.

     O mais barbudo dos pescadores sacode a menina pelos cabelos e chuvisca cuspe no rosto dela enquanto vocifera:

     - Aberração pagã, você se entrega ao sacramento do batismo?

     - Entrego o quê?

     - Nega que Iesus Christus é ao mesmo tempo carne e deus?

     - Carne de quem?

     - Matem esse demônio – o mais barbudo joga a menina para os outros.

     - Soltem a moça.

     Os quatro pescadores e a menina olham com surpresa para o mendigo esfarrapado que se aproximou.

     - Isso não é da sua conta, irmão – diz o mais barbudo.

     - Não sou seu irmão - das dobras da toga, o homem saca o punhal. E diz, com voz cavernosa: - Veni cum papa!”

     E, assim, ele está de volta! Tive o prazer de conhecer Publius Desiderius Dolens em “O Centésimo em Roma”, romance histórico de Max Mallmann, lançado em 2010. Na época, fiquei devendo ao Max uma resenha da obra, mas o tempo passou, e resenha vocês sabem como é: ou você faz no calor da leitura, logo após seu final, ou não faz mais. Fiquei em falta. Minha chance de me redimir surge agora, quando Max lança “As Mil Mortes de César” (Ed. Rocco – 2014). O romance relata a continuação das peripécias de Dolens, romano nascido no favelão romano chamado Suburra, e que passa a vida tentando ascender socialmente ao posto de cavaleiro. Não dispondo, logicamente, da fortuna necessária para obter o posto, recorre às articulações políticas, e assim cai na verdadeira montanha-russa do poder que foi o Império Romano do século I.
 

     Como demonstrado no trecho acima, Dolens começa o segundo capítulo de sua saga como mendigo, tentando permanecer anônimo para proteger sua própria vida e a de seus entes queridos, após as desventuras do primeiro livro. Entretanto, não consegue fugir de sua própria natureza, voltando a mergulhar de cabeça na política romana, nessa época mergulhada numa sangrenta guerra civil.

     A vida desse notável romano, onde se misturam personagens históricos reais e fictícios, é relatada mais uma vez, no livro, por seu amigo e contraparte ética e moral, Quintus Trabellius Nepos, na obra (fictícia) “Vita Dolentis”. No cenário, acompanhe momentos que beiram o absurdo e que pontuam uma guerra civil, e mais um capítulo da ascensão de uma seita nova, obscura e cheia de ideias esquisitas, que começa a marcar presença nas ruas de Roma: os tais cristãos.

     Um império vasto como foi o romano não se mantém sem contar, além do formidável aparato militar, com uma igualmente formidável estrutura político-administrativa. É nesse cenário complexo e estruturado que penetra o alucinado Desiderius Dolens, como uma faca quente na manteiga, passando de mendigo a legionário a desertor a centurião a tribuno a senador numa velocidade tão espantosa que diverte e surpreende o leitor, tal a forma absurda como o destino reserva a Dolens momentos de glória seguidos imediatamente por momentos de desgraça absoluta, e vice-versa.

    Em minha mente, Dolens funciona como uma mistura de Conan, o Bárbaro, com Groo, o Errante. A raiva e a frustração que servem como força motriz de sua vida inteira provocam momentos de brutalidade e de humor que Max Mallmann administra com muita habilidade. A ambição política que o impulsiona contrasta de forma paradoxal com a absoluta desimportância que ele parece atribuir, em muitos momentos, aos bens materiais. Seu código moral muito pessoal é instigante, e as poucas demonstrações de sofrimento verdadeiro que ele deixa escapar, diante do infortúnio de seus (pouquíssimos) seres queridos, nos emociona, no contraste que apresentam com a forma sarcástica, fria e até sádica, em alguns momentos, com que ele encara a vida e escolhe suas ações.
 

     Desiderius Dolens é um dos maiores e melhores anti-herois da literatura contemporânea e, à parte da honrosa oportunidade de acompanhar sua saga, “As Mil Mortes de César” ainda é um livro recheado de humor inteligente e de referências à cultura pop e à chamada “alta literatura”, muitas das quais pude identificar imediatamente enquanto lia. Para quem não conseguir, Max nos brinda com um posfácio onde disseca a maioria dessas referências e dá uma boa amostra do seu processo criativo.

     Na forma despreocupada com que ignora os protocolos e rótulos envolvidos no jogo da política, fazendo a coisa bem ao seu jeito, Dolens carrega o leitor consigo numa jornada de purificação. Ao fim da leitura, você se sente vingado. Afinal de contas, num país onde nossa indignação atinge os píncaros diante da corrupção das instituições e dos desmandos do poder, alimentados pela ganância e pelo desrespeito ao cidadão comum, quem de nós não sonharia em ver um desses bandidos mensaleiros chegando em casa, recém liberto da cadeia pelas brechas obscenas deixadas pela Justiça, e, ao entrar em sua sala luxuosa imersa na penumbra, ouvindo na escuridão uma voz cavernosa que lhe diz: “Veni cum papa”?

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