
Sabe aquele comichãozinho indefinido que fica te incomodando o tempo todo, meio no consciente, meio no subconsciente, sem que você lhe dê a devida atenção, e assim ele não passa? Quase uma macacoa? Pois eu estava com um desses, e decidi encará-lo de frente. Tem a ver com o tal "politicamente correto".
Lembro-me de quando li sobre isso em algum lugar, já faz alguns anos. Uma matéria sobre essa nova moda, surgida (que surpresa!) nos EUA. Na época achei meio cômica, essa ideia de mudar o nome das coisas para, de algum modo, atenuar o conteúdo que elas continuam tendo. Outras pessoas com quem comentei também acharam engraçado, como se fosse um criacionismo, ou uma cientologia da vida. Acontece que, nesse mundo que assumiu o tamanho de um "quarteirão global", a coisa cresceu e se espalhou. Pior: foi assumida como cool pela intelectualidade de vários países, incluindo o Brasil, fazendo jus a seu status de nação em desenvolvimento. Foi assim que a coisa pegou por estas bandas. É, mes amis, a coisa ficou afrodescendente...
O "politicamente correto" é uma forma politicamente correta de censura. Obviamente, seus principais defensores são as vítimas de qualquer forma de discriminação, como os negros, os homossexuais, os deficientes físicos, os idosos. Fazem coro os rincões mais hipócritas da elite intelectual, funcionando como o cimento que sustenta essa ridícula fachada. O que essas "minorias discriminadas" não percebem é que aderir e defender o "politicamente correto" não muda em essência, e não melhora em absolutamente nada sua condição em um nível de profundidade maior que o de um pires. Sim, a discriminação tem que ser frontalmente e exemplarmente combatida, e para isso existem as leis e a regulamentação acessória, que garantem a todo cidadão ser tratado com igualdade e sem agressão verbal, física ou moral por parte de qualquer outro cidadão. Isso sim, é o que vale e o que surte efeito. Agora, convenhamos: chamar negro de afrodescendente não o torna menos preto. Chamar homossexual de homoafetivo não o torna menos gay, nem o velho fica mais jovem quando muda de "terceira idade" para "melhor idade". Mas o pior de tudo é que, além de não alterar em nada a condição do discriminado, a mudança de palavras também não atua em nenhum sentido para atenuar a discriminação, o desprezo, a agressividade ou a atitude preconceituosa do indivíduo que detém essas coisinhas feias guardadas dentro de si. Quem é racista e fala "negro", não fica nem um pouco menos racista quando fala "afrodescendente", o que faz do "politicamente correto" uma forma de hipocrisia, uma maquiagem carregada, superficial e que não contribui em nadica de nada para melhorar a situação das minorias e fazer evoluir nossa condição social. Da mesma forma que a cultura estadunidense costuma ser o supra-sumo do entretenimento, mas não alcança o nível do subcutâneo, voltada exclusivamente para fora do ser humano, os entusiastas do "politicamente correto" querem fazer de nossa cultura sua Hollywood pessoal. O que é necessário, e muito necessário mudar urgentemente, é o conteúdo por trás das palavras, e não sua forma externa. Se na História do Brasil o termo "preto" foi carregado de conteúdo pejorativo, é preciso que primeiro se faça com que as novas gerações percebam esse erro e a enormidade desse absurdo, e a partir daí modifiquem, primeiro dentro de sua razão e de seu sentir, e depois nas suas relações com aqueles que os cercam, o recheio que vai por trás do termo. Porque, como o ser humano, as palavras também têm um corpo (a palavra escrita), uma alma (a palavra falada) e um espírito (o significado da palavra, o conceito que vai por trás dela). Enquanto o "politicamente correto" pretende alterar o corpo e a alma da palavra, maquiando-a como uma velha prostituta (ou eu deveria estar falando "profissonal do sexo"?) carrega nas cores e nas medidas das roupas para vender uma imagem que lhe renda mais clientes e aumente seu faturamento, é preciso atuar na causa, e modificar o espírito das palavras.
Recentemente participei de um vibrante e proveitoso arranca-rabo (e quero usar essa palavra aqui antes que me obriguem a dizer "extirpa-nádegas") em uma comunidade do Orkut a respeito justamente do racismo. Percebi, divertido, como as pessoas preferem negar que a cultura do país evoluiu, de uma mentalidade francamente racista (e socialmente aceita com naturalidade), influenciada pelas ideias eugenistas europeias e registradas para a posteridade nas obras de vários escritores consagrados, para uma cultura com uma visão crítica aguda o suficiente para condenar e elaborar leis que condenam essa atitude. Preferem simplesmente rotular o tal autor como "racista", condená-lo, e não se fala mais nisso. Não se leva em consideração o contexto, e por isso nada, absolutamente nada se aprende.
Falo de autores como Monteiro Lobato (que foi o estopim da discussão), Leopoldo Lugones, José de Alencar, Jorge Amado e até Gilberto Freyre. Sim, o autor de "Casa Grande & Senzala", a obra que é citada por muitos como o marco da virada de uma mentalidade onde a mistura de raças era sinônimo de decadência para a ideia de que essa miscigenação trazia benefícios inquestionáveis, em seus primeiros tempos registrou, como os outros citados e muitos mais, ideias racistas ou discriminatórias em livros, artigos de jornais, declarações pessoais, etc.
Como devemos nos comportar em relação a isso? Se Monteiro Lobato sedimenta seu racismo no romance "O Presidente Negro", então OK, o cara é racista... mas e daí??? O que fazemos com isso no século XXI? É o caso de censurar a obra, banindo-a como (não a) vejo em mais de uma lista de obras do autor em sites da internet? Reescrever as obras, como querem fazer os americanos com Mark Twain? Proibir "Caçadas de Pedrinho" na educação infantil, como pretendem nossos "educadores"? Melhor não seria promover uma leitura dirigida, estimulando as crianças e adolescentes a pensarem por si mesmos, de forma que compreendam o contexto psicológico da época, entendam que nós evoluímos desde ali, e que manter aquela postura retrógrada hoje em dia é muito, muito ruim? Não há mais benefício nisso do que em varrer nossos podres para debaixo do tapete psicológico?
Minha esperança é que chegará o dia em que, da mesma forma como hoje torcemos o nariz e abanamos a cabeça diante das ideias eugenistas europeias que consideravam a mistura das raças um sinal da degradação de um país, um dia alguém vai olhar para trás e agir da mesma maneira em relação à época em que as pessoas levavam a sério esse negócio de "politicamente correto". Se não, pode chegar o dia em que nossa hipocrisia cresça tanto e extravaze pelos poros, e contamine o ar que respiramos, e ninguém vai nem ligar se um desses políticos highlanders, que só desaparecem do cenário se tiverem literalmente a cabeça cortada, chegar ao cúmulo de assumir a presidência do Senado e mandar tirar da galeria de fotos históricas aquelas que fazem referência ao impeachment do Collor. Pode ser que ele diga que aquilo "é um evento menor, que não devia ter acontecido", descendo mais um degrau na fossa imunda do "politicamente correto", e vai ficar por isso mesmo. Vocês duvidam? Pois esperem só pra ver...