Você
pode até começar a protestar desde já, principalmente após ver as imagens
delicadas que ilustram esse tópico, dizendo que “isso não é esporte, isso é
ignorância”. Ou coisa pior. Não, não vou morder a isca. Pretendo tentar levar a
reflexão sobre o tema a um nível um pouco mais amplo e profundo.
Ontem fiquei até as quatro horas da matina
acordado, esperando pela luta na qual Júnior “Cigano” dos Santos, um dos atuais
ídolos nacionais do esporte, defenderia seu cinturão de campeão numa revanche
contra Cain Velásquez, o estadunidense de ascendência mexicana de quem o
brasileiro arrebatou o troféu em novembro de 2011.
Os comentaristas do Sportv não eram
capazes de conter o espírito torcedor em prol de uma neutralidade profissional
que favoreceria uma análise mais técnica da luta vindoura (e um constrangimento
menor depois do que se viu). Na luta preliminar, um combate digno de uma arena
romana de gladiadores, protagonizado por Jim Miller X Joe Lauzon, deixou o
octógono literalmente salpicado de pocinhas de sangue. Um comentarista não
resiste: “Que esta seja a luta mais bonita da noite, desde que Cigano ganhe
logo por nocaute.”
Cigano entra no ringue com seu futuro
algoz. Começa a dança da esquiva, enquanto Velásquez avança sobre ele como se
fosse o último prato de feijão da face da Terra. Os comentaristas, coitados,
explicam: “Espera até o Cigano encontrar a distância correta”; “daqui a pouco
ele entra no ritmo”...
Cigano é incapaz de manter os braços erguidos,
mantendo uma guarda adequada. Escapa pelos cantos do octógono, o olhar perdido,
inexpressivo. Apanha repetidamente no rosto, golpes certeiros que lhe deixarão,
ao final do suplício, um olho fechado e um beiço mais parecido com uma tromba.
Parece cansado. Mais sonolento do que eu. No primeiro round, leva um soco
direto no rosto que, talvez seu ato mais admirável na luta inteira, não
resultou em nocaute. No final, um chute no pescoço deixará a mesma impressão, a
despeito do nosso espanto (e dos comentaristas sem graça) de que a luta ainda
não tenha terminado rounds atrás. Com nocaute do brasileiro, claro. O treinador desesperado,
nos intervalos da pancadaria, ecoava a voz de toda a torcida: “Levanta essa
guarda!“, “se imponha!”. Tudo inútil. Cigano não lutou, apanhou
miseravelmente, essa é a verdade.
Ao final melancólico, surge a pergunta: “O
que aconteceu?” Começarão as famosas teorias da conspiração, é claro: “Ah,
isso foi para forçar uma terceira luta, um tira-teima! É tudo grana!” Pessoalmente
não acredito nisso, mas sinto uma incômoda familiaridade nessa sensação pós-luta, que
mistura frustração, tristeza e estupefação. Não foi o que você sentiu, por
exemplo, após a final da Copa do Mundo de Futebol na França? Ou na mais recente
Olimpíada, após a eliminação do futebol brasileiro (machos e fêmeas)? Ou após o
fiasco de grandes esperanças de medalha, como Fabiana Murer?
O atleta profissional brasileiro ocupa uma
posição ingrata. Por um lado, tem uma das torcidas esportivas mais apaixonadas,
e que mais cobram resultados. No Brasil, todo mundo sabe disso, o segundo lugar
é o primeiro dos perdedores. Por outro lado, tem entidades esportivas, desde as
políticas até os clubes, cujo verdadeiro apoio ao esporte está, sabidamente,
abaixo da crítica. Enquanto escrevo essas dolorosas linhas, o Flamengo acaba de
anunciar a extinção de sua equipe de natação; nossos maiores nomes da modalidade,
principalmente o multimedalhista Cesar Cielo, estão sem clube a partir de 2013.
Imagine-se diante duma pressão desse tipo. Você tem que ir lá e trazer a pele
do leão, “duela a quien duela”. Nossos
esportistas batalham por suas especialidades, só para generalizar o que é a
regra, sem dinheiro, sem patrocínio, sem material de treinamento, sem
planejamento, e o pior de tudo, sem um apoio psicológico decente, presente em
qualquer potência mundial dos esportes, que permita ao indivíduo suportar a
carga de seu desafio profissional, acrescida de alguns quilos de inseguranças
pessoais, e algumas toneladas de cobranças da torcida e da mídia. Não será por
isso que, na hora H, nossos atletas amarelam num tom mais doentio e fosco do
que o da adorada Seleção Canarinho?
O que aconteceu realmente com Ronaldo na França?
Onde estava Neymar em Londres? Fabiana Murer arregou em meio à corrida para o
segundo salto, e não pulou mais. Colocou a culpa no “vento”. OK. As demais
atletas saltaram normalmente. Que redemoinho maldito era esse, que só ventava
nela?????
Talvez as autoridades competentes não se
apressem em mudar essa situação porque sabem muito bem que nós, brasileiros,
adoramos um Cinderelo de Chuteiras. Domingo no Fantástico: o menino pobre da
favela, que saiu da miséria com o sacrifício da família, contra tudo e contra
todos, e se transformou num ídolo do esporte nacional! Com narração de um
locutor de voz bondosa e sonhadora, e depoimentos lacrimosos de pais, mães e
treinadores de várzea. Quem descobre talento esportivo em categoria de base, no
Brasil, é empresário garimpeiro que está preocupado com os ganhos pessoais. O
sonho do brasileiro comum é ver seu ídolo naquele menino descalço que jogava
num campinho de terra, e foi avistado pelo grande time profissional enquanto o
ônibus se deslocava para o estádio. “Opa, coloquem aquele moleque para dentro,
que vai ser nosso próximo centroavante!”
Desde o Jeca Tatu, e o sertanejo, que é
antes de tudo um forte, a mentalidade brasileira venera essa versão ingênua
e estereotipada da “jornada do herói”, de Joseph Campbell: o pobrezinho que
supera as dificuldades da vida comum, quanto mais, melhores, e vira um sucesso.
Nossos atletas são, de preferência, encarnações desse conto de fadas deturpado.
Apesar
disso (e talvez exatamente por isso) não perdoamos quando um Cigano da vida
sobe ao ringue e não luta. Miller e Lauzon, na luta anterior, foram aplaudidos
de pé pela audiência. Os dois homens queriam ganhar. Mostraram isso a preço de
sangue, literalmente. Até o fim. Cigano subiu e apanhou pacientemente até o
final do quinto round, embalado pelo som de uma audiência inteira que gritava
seu nome em sinal de apoio. Até o fim. Nada disso o comoveu.
Júnior Cigano nos deve uma explicação, que
não seja o vento: que sua mãe foi sequestrada, e seria morta se ele não
entregasse a luta; que acabava de descobrir que sua namorada o traía com o
Minotauro; que estava com uma simples e prosaica caganeira. Desculpe, Cigano,
mas fiquei até as quatro da matina para vê-lo lutar. Pelo menos lutar!
Diferentemente da maioria dos brasileiros, que só aceita o lugar mais alto do
pódio, confesso que senti falta de ver seu esforço. Um pouquinho que fosse, e
não ver isso foi deprimente. O Cinderelo de Chuteiras pode ser um sonho ingênuo
e quimérico, mas o que você me proporcionou, como exemplo de atleta, foi
infinitamente mais inacreditável. E, como foi real, assustador.
Mas, como eu disse, deixo o benefício da
dúvida. Pode ter alguma explicação decente. E que seja boa, porque nossos
meninos do esporte carecem muito de bons exemplos, não só de vitória, mas de
luta. Sabe o que é? É que vem aí uma Olimpíada no Brasil. E vocês não vão ter
grana, nem apoio oficial, nem planejamento, mas o que todo mundo quer, na
verdade, é muita medalha. Perto do que vejo no horizonte, amigo Cigano, o que o
Velásquez lhe fez vai parecer um beijo de mãe.
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