sexta-feira, 6 de abril de 2012

Os Pobres & Os Pobres



Essa odisseia filosófica começou assim: minha esposa engravidou e, prevendo as óbvias complicações na dinâmica doméstica que isso traria futuramente, decidimos trocar nossa diarista, que nos atendia duas vezes por semana, por uma empregada que dormisse no serviço. A primeira, a diarista, era uma pessoa de origem humilde, porém habituada a ler, gostava de filmes, e sua filha, até onde eu sei, aprendia inglês e estudava informática. Não se preocupe com isso agora, a relevância de tudo isso virá adiante.
Por sugestão da empregada de minha irmã, excelente funcionária que cuida bem da casa e de
minhas duas sobrinhas, admitimos em janeiro uma conterrânea sua, uma senhora de cinquenta e poucos anos, analfabeta de pai e mãe, mas que se mostrou muito feliz e grata com a oportunidade, e disposta a se adaptar e a aprender o que não dominava no que se refere a serviços domésticos.
O nascimento de nossa filha seria no final de março. Por dois meses, minha esposa se empenhou em deixar a empregada “afiada” para nossas necessidades; eu, por minha parte, limpei o antigo quarto de despejo para que pudesse acomodá-la, e compramos colchão novo, TV de tela plana, e até, por sugestão de minha mãe, um rádio a pilha, do qual que ela gostou mil vezes mais do que da TV (damn!).
Duas semanas antes da data do parto, fomos surpreendidos com a notícia de que ela “não pretendia ficar”. Mas por quê, indagou desesperada minha esposa quase a termo, foi algo que fizemos? “Não, não me acostumo com Belo Horizonte”, foi a resposta dela. Ressaltou que minha esposa foi a melhor patroa que ela teve, e o quartinho que arrumamos para ela era perfeito. O problema era que queria voltar para a roça.
Ficamos atônitos. O salário oferecido a ela, diante do que ela ganhava no interior, resolveria
todos os seus problemas, inclusive uma alegada reforma de que sua casinha necessitava. Ela já havia trabalhado em Belo Horizonte antes, ou seja, a desculpa de que “não se adaptava” parecia meio fajuta. De fato, conversando com sua amiga, funcionária de minha irmã, soubemos que nossa senhora de cinquenta e poucos anos arranjara um namorado em sua cidade, durante o carnaval, e por isso se mostrava dominada por uma ansiedade adolescente no sentido de retornar para o interior.
Minha esposa pediu, quase implorou, para que ela pelo menos nos esperasse conseguir uma
substituta. Ela, meio a contragosto, concordou. Entrevistamos algumas, e um número alarmantemente significativo chegou a “fechar negócio” conosco, apenas para dois ou três dias depois voltarem atrás, pelas razões que nos pareciam mais descabidas: a discordância de uma filha, já que ela trabalhava de babá para a neta; a ex-patroa, que chorou e entrou em crise depressiva quando ela falou em sair do emprego, e por aí vai. Estava difícil. Nossa “prestativa” auxiliar dava palpites, ansiosa pela notícia de que tinha uma substituta, para poder nos olhar pelas costas.
Chegou o dia do nascimento de nossa filhinha. Nossa empregada apaixonada recebeu seu derradeiro salário na manhã de sexta-feira, antes de sairmos para a maternidade. Minha esposa pediu que ela retornasse no domingo para nos ajudar, com o que ela concordou, mas levou todas as suas coisas, e não quis levar nossa chave de casa. “Por quê? Você vai voltar mesmo?” Ela respondeu: “Claro, não sou uma pessoa irresponsável, pode ficar tranquila.” Não voltou. Nem atendeu aos telefonemas. Nunca mais a vimos, o que, admito, não foi desagradável.
Talvez o pior da sensação ruim se deva ao fato de você atuar com toda ética, boa vontade e lealdade com uma pessoa assim, crendo que está fazendo um grande bem a ela, e a resposta sugerir que você é uma grande e ingênua besta. Por outro lado, se algo de bom se retira da experiência, foi minha reflexão a respeito dos tipos de pobre.
Existem pelo menos dois grandes grupos de pobres: chamei-os de “pobres de dinheiro” e “pobres de espírito”.
Anos atrás conheci uma moça muito bonita, uma mulata alta, de olhos verdes, sempre bem vestida, uma simpatia só. Convivíamos dentro de um grupo, e tempos depois fiquei sabendo, por uma amiga mais antiga, que ela havia nascido na favela, em uma família muito, mas muito pobre. Lutou muito com seus próprios meios, e agora tinha um cargo de responsabilidade e destaque em um grande banco. Fiquei admirado, e sempre me lembrava dela quando eventualmente conhecia pessoas assim: desprovidas de recursos materiais, jamais usavam isso como desculpa para autocomiseração, ressentimento social ou justificativa para atos condenáveis. Esses “pobres de dinheiro”, uma vez que era apenas o material que lhes faltava, conservavam sua moral e sua dignidade, lutando contra adversidades às vezes enormes até seu merecido reconhecimento e melhora de vida. O “pobre de dinheiro”, concluí, tem esperança. O problema mesmo é o “pobre de espírito”. Este tem uma visão estreita e mesquinha da vida, egoísta e imediatista. Seu limitado círculo de conforto é sua maior preocupação, e apenas se move para conservá-lo com um mínimo grau de esforço. O “pobre de espírito” não respeita as necessidades ou a vontade de ninguém que orbite mais longe que seu umbigo sujo. Já conheci inúmeros. Não apenas minha ex-auxiliar, em quem penso com um prazer malévolo esperando o dia em que o namorado do carnaval dê-lhe um pé nos fundilhos; quem sabe um dia alguém me ligue, pedindo referências dela para um emprego? Não, não desejo mal a ninguém, mas também não vejo por que prejudicar outro pobre patrão ocultando a verdade. Conheço outro caso, de uma senhora que fazia serviços gerais em uma escola, e um dia pediu as contas. “Mas por quê, fulana?” – esses pobres sempre surpreendem seus empregadores da mesma forma – “Logo agora que seu marido faleceu?” Ela responde alegremente: “É por isso mesmo, vou receber a pensão dele, não preciso mais trabalhar.” O “pobre de espírito” quer se dar bem, mas não se preocupa em melhorar, o que é muito diferente, mas o mais curioso é que “pobre de espírito” e “pobre de dinheiro” são duas coisas sem o menor ponto em comum. O primeiro não é necessariamente um “duro”. Tem “pobre de espírito” profissional liberal, explorando e pisando em colegas menos experientes ou mais ingênuos, faltando com a ética profissional das formas mais desavergonhadas. Tem aquele que é empresário, e se mete em todo tipo de falcatruas falsificando remédio ou material de construção, superfaturando negociatas, entrando em maracutaias, doa a quem doer, desde que a ele mesmo não doa. O que mais tem é “pobre de espírito” político, como você pode ver diariamente nos jornais, e suas atitudes e palavras chegam a ser verdadeiras afrontas ao senso comum, ainda que
eles profiram suas enormidades com um sorriso cínico no rosto. Em termos de quantidade, não sei qual grupo tem mais gente, mas já disse uma vez o pensador argentino González Pecotche: “A miséria moral é mil vezes mais espantosa que a material.”
Uma coisa é certa: o “pobre de espírito”, tenha dinheiro ou não, é um câncer dentro da estrutura social, seja em que âmbito atue.
Para sua tranquilidade, leitor: nossa filhinha nasceu e está muito bem e muito linda. E já arranjamos outra auxiliar, uma daquelas que deram para trás, mas em um lampejo de bom senso (que esperamos que dure) voltou atrás. E assim vamos vivendo, até a próxima surpresa.

5 comentários:

  1. Sim, depender dos outros não é mole, já diz o velho ditado... nem pagando podemos ter uma certeza de que a coisa correrá como combinado.
    Você sabe que, no meu caso, a coisa foi BEM mais rápida e corrida que no seu, e nossas opções eram quase nulas, e tínhamos de resolver em dias.
    A sogra ficou por aqui umas 3 semanas, e passamos a diarista de 2 vezes para 3 e alguns sábados também.
    Preferimos ter uma pessoa de confiança e que NÃO pisava na bola do que ter uma segunda pessoa.
    Deu certo, e sei que vocês vão se virar, esquentem menos a cabeça com isso, o importante é a Pimpolha... o resto é o resto.
    Abração

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  2. É isso aí, Mestre Ivo. Hoje um leitor disse que eu estou muito revoltado. Impressão errada. Isso foi só a gota d'água. Os "pobres de espírito" que tiveram escola, como meus colegas de profissão ou pessoas instruídas e (teoricamente) bem educadas que conheço, me estressam muito, mas muito mais. Tamos na boa...rs*

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  3. Isso é complicado mesmo, Flávio... ainda temos um governo e uma sociedade estruturada para favorecer os "pobres de espírito"... aí que a coisa piora. (Governo "bolsas"). É da estrutura BRASILEIRA escolher o caminho mais fácil - o famoso jeitinho brasileiro que tanto abomino, a Lei de Gérson...

    mas como disse o Ivo, o que importa é a pimpolha... desde que ela esteja bem e saudável, a vida corre dentro do seu sentido, dentro dos trilhos.

    Abraços a vc e à Lu...
    Christiano Drumond

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    1. É isso mesmo, Chris. Acho que a coisa melhora, mas ainda demora muuuuito. Rs*
      Abraço, e valeu!

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  4. Flávio, você se esqueceu de falar dois tipos de pobres, aqueles que foram criados pelos pais para serem pobres ou seja, se você perguntar para um deles se já foi ao Diamond, por exemplo, ele vai falar que "de jeito nenhum, isso não é lugar para mim!", com outras palavras, o cara tem baixa auto estima e isso faz com que ele tenha menor chance de vencer na vida. Um outro tipo de pobre também merecia ser citado, aquele que mal tem onde cair morto, mas posa de rico, desfaz de outros pobres e muitas vezes gasta seu salário inteiro comprando uma roupa ou bolsa de marca e depois não tem dinheiro para fazer nada. Esse tipo acaba ficando pendurado nas costas de alguém no final da vida. Jean Breves.

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