Muita repercussão, nos
últimos dias, teve a charge de autoria do Chico Caruso, publicada em um jornal
de grande circulação a respeito da tragédia em Santa Maria (RS), quando mais de
duzentos jovens, em sua maioria universitários, morreram no incêndio da Boite
Kiss durante uma festa. Não a repercussão que o Chico almejava, com toda
certeza. Algumas críticas indignadas e bastante violentas. A charge é essa aí
em cima.
De acordo com o amigo Octavio Aragão, cuja
tese de doutorado teve tema ligado às charges, essa forma de expressão cultural
nasce do grotesco e bordeja o mau gosto. Teria, como sua principal função (ou
uma das principais), incomodar, “mover” o leitor de alguma forma (Octa, favor
me corrigir se entendi errado). Sua razão de existir seria a crítica, não
necessariamente com humor.
Na minha percepção, o humor como forma de
crítica parece ter nascido com o teatro grego. Enquanto a tragédia grega servia
para exaltar a pequenez do ser humano e sua impotência diante da vontade dos
deuses, a comédia surgiu como movimento antagonista, de caráter essencialmente
popular e usando o humor para escrachar as elites, o governo ,e por que não?,
os próprios deuses. O humor, quando usado na charge, me parece ter função
idêntica. O mais curioso, entretanto, em relação à charge do Chico, é que sua
intenção permanece nebulosa, pelo menos é o que pude apreender acompanhando as
discussões nas redes sociais. O que ele pretendia? Fazer uma crítica? Humor?
Manifestar pesar ou perplexidade? Para uma forma de arte que se propõe a
transmitir uma ideia claramente através de uma única imagem, não me parece
muito promissor.
Algumas teorias a respeito pipocaram na
internet. Disseram que seria politicagem do Chico, como sinal de fidelidade a
seus mestres antigovernistas. Não sei. Talvez. No entanto, se foi o caso, não
me parece ter sido bem sucedido. Não vi na imagem nenhuma ironia ou mesmo
crítica sutil contra o governo. Sim, a presidente Dilma esteve em Santa Maria,
e, como todo ser humano minimamente dotado, manifestou à sua maneira emoção e
perplexidade. O que me parece é que o Chico mostrou exatamente isso, a
perplexidade da Dilma de forma caricaturizada. E usou para isso um trocadilho,
usando o nome da cidade como forma de exclamação de espanto, diante de uma
jaula cheia de gente pegando fogo. Nesse caso, parece que ele tentou, sim, usar
um tom de humor. Muito infeliz. Tanto o trocadilho quanto a imagem são de
extremo mau gosto, e chocam o leitor. Por quê?
O ser humano é o único ser vivo sobre a
superfície de nosso planetinha dotado de uma capacidade inerente a sua natureza
sensível: a de consentir, que também poderia ser definida como “sentir com”. As
coisas importantes, significativas, que acontecem com nosso semelhante nos
evocam reações sensíveis: coisas boas, reação de alegria ou prazer. Coisas
ruins, reação de tristeza. Isso é natural, isso é humano. Eis a razão pela qual
qualquer manifestação tendente a diminuir, a fazer pouco da importância desses
momentos, soa como desrespeito, e ecoa como desaprovação não apenas no coração
daqueles envolvidos diretamente no suposto episódio, mas também em todos que
consentiram com eles. Por isso considero uma enorme bobagem uma manifestação
que li, bem típica daqueles julgamentos pré-fabricados dos que têm preguiça de
pensar e que ouvimos com frequência nas filas de banco ou supermercado: “a
comoção foi grande porque eram jovens bonitos e ricos, se fossem pobres e feios
ninguém estaria ligando”.
Desculpem, mas não foi o que me encheu os
olhos d’água acompanhando a cobertura da imprensa do episódio em Santa Maria.
Como também não foi o que senti em outras tragédias, como mortes em
soterramentos, enchentes ou incêndios em favelas. É perfeitamente natural que o
grau de comoção seja maior quando aquele que se comove se identifica mais com a
pessoa que sofre. Ele se vê na mesma situação, ou vê um filho, ou um amigo. Mas
o consentimento com o sofrimento alheio, não tenho dúvidas, transcende questões
de raça ou classe social. Tem a ver com nossa situação de irmãos, sem nenhum
viés religioso ligado à palavra, irmãos por sermos todos humanos e viventes
neste mundo, com as mesmas expectativas, os mesmos sonhos, as mesmas dúvidas.
Para os que acreditam, mais uma vez excluindo qualquer sentido religioso,
filhos do mesmo Pai.
Foi esse sentimento generalizado, um dos
mais puros dentro do coração humano, que Chico Caruso feriu com sua charge de
mau gosto. E nas manifestações de repúdio, muitas, como eu disse, exaltadas,
não cabe falar em “censura”. Outra bobagem enorme. Porque a charge nem de longe
acarretará qualquer sanção ou limitação da liberdade de expressão do Chico de
agora em diante. Só quem perde é seu conceito pessoal, o que é justo e
compreensível quando um indivíduo se manifesta com desrespeito diante do sentir
de um grupo maior. No caso, maior como a própria humanidade, dadas as
manifestações sobre o assunto que saíram em jornais do mundo inteiro. Jô Soares
já se referiu a esse tipo de coisa, mais de uma vez, como “bumbada na pausa”. É
quando uma banda toca com total harmonia e, na hora da pausa, quando deveria
haver silêncio, soa o som indiscreto do bumbo. Todos olham para o “bumbeiro”
afoito, que se encolhe de vergonha. A bumbada do Chico Caruso dificilmente
poderia ser mais infeliz.
Se a função da charge é “incomodar”,
certamente não o conseguiu da maneira esperada, uma vez que a indignação não se
direciona ao acontecimento em si, e dificilmente resultaria em algum movimento
de mudança ou contestação, como conseguiu a cobertura da imprensa na TV. O
incômodo foi contra o autor, não contra o assunto da charge, e essa mudança de
foco, para mim, significa fracasso. Sim, uma charge ruim.
Já que falei na cobertura feita pela TV,
cabe ressaltar que no princípio considerei excessiva, explorando o assunto até
a exaustão. Porém, conversando com amigos, eu mesmo acabei mudando de ideia.
Num país onde temos o costume de esquecer rapidamente as coisas, perdendo a
oportunidade de aprender com a História, talvez a intensidade da cobertura sirva
para prolongar, nem que seja um pouco mais, a nossa indignação pela morte sem
sentido daqueles jovens em Santa Maria, resultado da mais crua negligência de
poderes públicos e privados. Se a conta da tragédia resulta em prejuízo, que
este possa ao menos ser amenizado com alguma atitude séria das autoridades que
possa evitar a repetição desses fatos inconcebíveis. E não, não vamos esquecer
nossas indignações antigas: temos picaretas mensaleiros a prender e salafrários
corruptos a investigar. Que nossa indignação coletiva também seja capaz de se
unir, num sentimento comum, nosso povo, no sentido de fazer, efetivamente, um país
melhor. E, por favor, sem bumbadas.
Finalmente, respondendo a uma provocação
do amigo Octavio Aragão, segue uma charge que considero “de bom gosto”. Une os dois
assuntos que abordei aqui.
Acho que esta turma da "correção" erra o ponto mesmo. A charge é ruim, só isso, pois os leitores "normais" sabem das regras, dos códigos de leitura e a partir daí classificam cada obra como boa ou, ruim. Pelas regras "memeticas" da internet, coisas "boas" são reproduzindas, replicadas, coisas ruins não.
ResponderExcluirClaro, algumas vezes a coisa é tão ruim que se reproduz pelo ultraje, mas este tipo de "reprodução memetica" tende a ser menos eficiente, por cair no tema "tão ruim que não dá pra esquecer", o que nem é o caso discutido.
Por exemplo, poderiamos imaginar algo ao estilo Henfil, com uma imagem parecida com do Caruso, com o sujeito dizendo: "Isso não é justo!", e outra imagem com o congresso em chamas, dizendo "Isto, é justo!". Continuaria sendo de mau gosto, mas teria uma mensagem, um punch politico que legitimaria a piada.
Excelente complemento, Lorde Naka. Um enfoque interessante.
ExcluirFlávio, excelente texto, e lembrando que o assunto, mortes trágicas, é o que mais traz audiência 'as nossas TVs abertas que se fartam em obter até o oco do sofrimento alheio. Mas como você mesmo disse, pelo menos a cobertura exaustiva da tragédia vai chamar a atenção para a existência de uma "pseudo-vigilância" que existe em locais públicos neste país. E assim menos vidas serão perdidas.
ResponderExcluirAcho o mais execrável admirarem tais sujeitos que com uma bela quantia se safam de fechar as portas, e são chamados de "homens de negócio", afinal o "mundo é dos espertos".
Estou aguardando o grande lançamento de 2013, me avise ein!
Valeu, Daniel. O lançamento está se "delineando"... Abraço!
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