terça-feira, 12 de março de 2013

Divina Tragédia

(*)

DIVINA TRAGÉDIA

     Estava Deus compenetrado, os olhos fixos no infinito, quando entrou esbaforido o Camerlengo.

     - Deus! Deus! Uma emergência!

     - Fala, Camerlengo... – disse Deus, os dentes trincados e o queixo apoiado na mão, já acostumado aos dramas do funcionário.

     - Duas galáxias estão prestes a se engalfinhar no setor Gama...

     - Estou ocupado, Camerlengo – Deus continuava monotônico, mas, apesar de milênios e milênios de serviço, o outro ainda não aprendera a reconhecer o divino mau humor.

     - Mas, Deus... São trilhões de planetas habitados, cada um com bilhões de habitantes, prestes a desaparecer! O que pode ser mais importante?

     - Está rolando o Conclave, Camerlengo. – Deus suspirou e encarou o servo pela primeira vez, os olhos divinos injetados por milhões de raios cósmicos.

     - Con... quem? – balbuciou o Camerlengo, confuso, olhando estupidamente ao redor.

     - Olha lá... – Deus puxou o outro delicadamente pelo ombro e apontou em direção ao infinito. O Camerlengo estreitou os olhos numa fenda confusa, franziu a testa e esticou o lábio inferior.

     - Presta atenção; tá vendo Andrômeda?

     - Andrômeda... Andrômeda... ah, tá, aquela espiral bonitona lá embaixo...

     - Isso! Agora olha mais à direita, um pouco pra baixo. É a Via Láctea.

     - Via Láctea... – o Camerlengo esticou cada letra eternamente pronunciando o nome, para desespero de Deus. – Desculpe, mas não vi ainda.

     - Olha meio de lado, Camerlengo. Olha para Andrômeda, mas presta atenção no campo periférico, onde ficam os bastonetes da retina. Vai ver uma nebulazinha apagada...

     - Ah, tá! Via Láctea! Agora lembrei. Tá ali, apagadinha. O que tem lá mesmo?

     - O planeta Terra. Lembra, os humanos?...  

     Após eternos segundos de silêncio o Camerlengo deu de ombros, vencido.

     - Desculpe, Deus. Seus desígnios são um mistério para mim.

     Deus ergueu os olhos para...ahn... o espelho, como se pedisse ajuda. Sentou-se diante do criado e começou, em tom professoral:

     - Na galaxiazinha da Via Láctea tem um planetinha chamado Terra. Fica bem na periferia, num braço externo, quase despencando para o espaço profundo. É pequenino, mas simpático. Lá tem uma religião que dominou o mundo por mais de dois mil anos, e agora o líder deles renunciou. A cúpula está reunida para escolher o próximo. Isso se chama Conclave.

     - Ah, estou lembrando... – o Camerlengo estalou os dedos, aliviado. – Não foi esse pessoal que andou espalhando que Você deixou um filho zanzando por lá, um tempo atrás? Um que – teve um caso esquisito - morreu crucificado para redimir os pecados de todos?

     - Sim, a conversa foi essa mesma – Deus voltava a soar contrariado.

     - Na época eu sugeri um exame de DNA...

     - Como assim, Camerlengo? Fui eu quem criou tudo que existe, meu DNA (que, aliás, fui eu quem criou também) está impregnado no menor pedregulho de Alfa-Centauri IV e na maior das bestas-fera do planeta Xandelón! Tudo que existe é filho meu, até você! É claro que ia dar positivo!  

     - Eu não tinha pensado nisso. Então, o chefão lá renunciou...

     - O tal que dizem ser meu filho morreu na cruz. Com que direito aquele alemão desce assim da cruz?... – Deus resmungava, mais para si mesmo. Foi ficando irritado e, em algum lugar, meia dúzia de quasares começaram a brilhar mais forte. Reconhecendo o perigo, o Camerlengo decidiu dar continuidade à conversa.

     - E esse tal “Conclave”... demora?

     - Nem eu sei. Os líderes estão orando pela minha inspiração. Querem de todo jeito que eu dê uma dicazinha. Os velhinhos da cúpula se trancaram hoje na Capela Sistina. Lembra? Aquela que Michelângelo pintou todinha em minha homenagem.

     - Lembro! Teve a polêmica do paredão do Apocalipse...

     - Sim, uma parede inteira para explicar como vou acabar com o mundo. Imagina! Eu, com tanta coisa para me preocupar, acabar com aquele mundinho!...

     - Por mim dava processo...

     - Pensei no assunto, mas decidi relevar, em homenagem ao todo da obra. Ficou bonito, sim.

     - Bem, mas se os caras estão trancados lá dentro, não vai demorar até decidirem alguma coisa, certo?

     - Quem me dera. Olha lá, acaba de sair fumaça preta da chaminé! – Deus suspirou, xingando um palavrão, e lá bem longe uma estrela explodiu e virou uma supernova. – Significa que não chegaram a um consenso. Parece que tem umas quatro facções que não entram em acordo...

     - Mas é muito simples, Deus! Diz logo quem vai ser o novo chefão, e acaba logo com isso!

     - Eu? Como assim, Camerlengo, pirou?! Naquele planetinha tem um monte de grupos, cada um com sua versão de Deus, dizendo que os errados são os outros. Já fizeram – e fazem – guerras fratricidas por causa disso! Você acha que isso me deixa feliz, como pai? Será que não dá para esse povinho entender que sou pai de todo mundo, sem distinção, e não precisa organizar religião por causa disso? Imagina se decido dar um empurrão em um grupinho, e nos outros não! Esse povo explode o planeta!

     O Camerlengo voltou a dar de ombros, as palmas das mãos viradas para cima.

     - Seu nome é que está envolvido, Você é quem sabe.

     - Esse é o problema. MEU nome. Por isso não consigo me desligar, apesar de ter anos-luz de coisas para fazer nesse meu universo. Fazer o quê, sou assim mesmo, responsável. Não se cria um universo sem responsabilidade, Camerlengo.

     - Eu sei, Deus – suspirou o outro. – É o seu calvário. Mas me diga uma coisa: o negócio não pretende ser por “inspiração divina”? Então por que esse segredo todo? Por que os velhinhos não discutem abertamente, revelando para todo mundo suas dúvidas, seus interesses, seus medos, suas esperanças? A melhor forma de se revelarem filhos de Deus não seria assim, revelando-se humanos? Não é o que Você espera deles?

     - Não é difícil de entender, é, Camerlengo? Estou quase te mandando para lá...

     - Você que me livre! Só ia servir para inventarem uma nova religião em volta de mim, excluindo as outras, e logo haveria uma guerra, e depois eu ia acabar dependurado em uma cruz à toa, porque esse seu povinho doido entende tudo errado! Quer saber de uma coisa, Deus? Desculpe a ousadia, mas estou achando que esse planeta Terra deu errado. Ah, vá, é só um planetinha de nada, e esse pessoal obtuso já revelou que te considera capaz de acabar com tudo! Então dê razão a eles! Tem lá uns meteoritos rondando, não tem? Dá uma sopradinha de leve em um, acaba com tudo e começa de novo. Puxa, Deus, você tem a eternidade para recomeçar! Ninguém vai reclamar, eu te garanto...

     Deus suspirou e coçou o queixo, pensativo.

     - Começar de novo?... Camerlengo, sabe aquele armário lá no porão?

     - Sei. O empoeirado.

     - Procura, lá na prateleira do fundo, uns desenhos antigos meus. Vou dar uma estudada.

     - Qual chumaço Você quer? Lá está cheio.

     - Um com a etiqueta “Dinossauros”. Quem sabe...

     O Camerlengo saiu rapidamente.
 
(*) A imagem que ilustra este post é Deus, do genial Carlos Ruas, autor da tirinha "Um Sábado Qualquer"

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