Ser médico não é fácil.
Nunca foi. Não estou falando, aqui, dos anos a fio nos bancos de escola, dos
plantões massacrantes nem da capacidade magayveriana de improviso, que é
necessária para driblar o sucateamento das instalações e recursos da Saúde
neste país.
Hoje estou falando de lidar com a
ansiedade do ser humano. Esta existe em qualquer nível de relacionamento
médico-paciente. Por um lado, existe esse paradoxo do cliente que não se cansa
de repetir que “médico não é Deus”, mas está permanentemente na expectativa de
que o seu SEJA um. Mas fica mais claro nos atendimentos de urgência e
emergência, onde o sofrimento e a dor do doente atingem seus níveis mais
elevados, e até mesmo a calma e o distanciamento do médico, necessários para
garantir uma conduta técnica e eficaz, são às vezes interpretados das mais
diversas formas: insensibilidade, prepotência, mau humor, etcétera.
Tomo a liberdade de transcrever aqui
exemplos reais – e recentes - do que tem acontecido nos últimos tempos, de
acordo com a experiência pessoal de um médico amigo, profissional das áreas de
urgência e emergência:
- “Uma pessoa me parou no meio da rua,
solicitando que eu fizesse pedidos de exames para ela. Expliquei que ela tinha de
se consultar com alguém, que não se faz isso no meio da rua. Ela achou ruim.”
- “Três pacientes se atrasaram no
consultório (adendo meu: no meu consultório, só hoje, quatro pacientes deram o
bolo, faltando sem se justificar ou avisar). Todos reclamam quando o médico
atrasa. E quando eles atrasam, o que fazemos? Mandamos para casa?” Experimente
tentar não atender, por causa do atraso. AH!
- “Um paciente de um colega me ligou
pedindo encaixe, pois estava passando mal, e estava disposto inclusive a pagar
uma consulta particular pelo incômodo. Autorizei, como de costume. Uma mentira
deslavada. Ele não tinha nada, e ainda se consultou pelo convênio. Resultado:
com o encaixe, acabo chegando atrasado ao plantão.”
Porque médico tem isso: sai do consultório
direto para o plantão noturno, e amanhã cedinho sai do plantão para o
consultório. Com o atraso do meu colega por causa do encaixe, é bem possível
que tenha encontrado alguém reclamando do atraso no plantão.
Mas não quero correr o risco de descambar
para o “mimimi”. Não é esse o meu objetivo. O que eu disse até agora todo mundo
sabe, e cá entre nós, a maioria nem está se lixando. O que me chama atenção é o
aumento da atitude agressiva, arrogante, intolerante do paciente em relação ao
médico na medida em que o tempo passa. É fácil compreender isso num país onde o
próprio governo federal promove uma campanha explícita de demonização da classe
médica, jogando a população contra ela, como bode expiatório para o caos em que
mergulhou a Saúde por óbvias razões de falta de investimento, desvio de verbas
e corrupção desse mesmo governo. Recentemente, uma campanha veiculada pelo SUS
ainda pretende – supremo absurdo – jogar o paciente negro contra o médico,
taxando-o, nas entrelinhas, de “racista”. Assim, de maneira genérica e
desavergonhada.
O mais interessante é a postura “Jeckyll
& Hyde” que adota o paciente, geralmente aquele que não tem razão, apenas
descarrega toda a tensão e as frustrações de seu dia a dia no alvo da vez, o do
jaleco branco. Por experiência própria, rarissimamente o paciente que
desrespeita, desanca e ultraja a secretária na sala de espera faz o mesmo
dentro do consultório. Entra calmo, doce, sorridente; dificilmente você
acreditará que é a mesma pessoa que sua secretária vem, depois, informar que a
chamou de “vagabunda” para baixo. O paciente que não tem a moral, a ética, o
pudor de ser justo em suas reivindicações, aquele que no fundo sabe que não tem
razão, é um Hyde na sala de espera e um Jeckyll no consultório. É um covarde,
que não aprendeu em casa que direitos e deveres andam de mãos dadas, sob o
olhar vigilante da responsabilidade, para que a liberdade possa existir.
Recentemente, aprendeu a usar mais uma
arma em sua pusilanimidade: as queixas feitas diretamente ao plano de saúde.
Esses tipos comparecem á consulta, como de praxe, cheios de sorrisos. Brincam,
conversam amigavelmente. Não se iluda. Quando chegar a notificação do convênio,
pedindo-lhe “uma defesa em uma semana”, você não acreditará que é a mesma
pessoa, tais os termos raivosos e agressivos que usará referindo-se a sua
pessoa. Geralmente se queixará de aspectos que, houvesse questionado
pessoalmente, você teria facilmente desfeito o mal entendido. Revelará um
desconhecimento quase hilariante do funcionamento de um atendimento médico, ou
da ciência envolvida nele, em queixas floreadas e descabidas.
É óbvio que essa ferramenta é extremamente
útil, nos casos em que as queixas são bem fundamentadas. No entanto, como toda
ferramenta, o excesso de liberdade e a má educação tendem a conduzir a abusos. O
que essa gente não percebe é que, com o mau uso, a própria ferramenta começa a
cair em descrédito. As queixas vão ser analisadas por pessoal técnico, que
conhece do assunto assim como o profissional que elabora sua defesa. Sendo
assim, no momento de registrar sua queixa, esteja muito bem fundamentado;
resista à tentação perversa de “enfeitar” ou exagerar em suas argumentações,
sob pena de cair em descrédito e não lograr nenhum de seus objetivos possíveis:
a correção de uma injustiça/mau atendimento, ou “ferrar” o infeliz para quem,
pouco tempo atrás, você era todo sorrisos e salamaleques.
Diz a lenda que começou a chegar no Céu um
número cada vez maior de pessoas se queixando dos médicos, certamente vindos de
algum governo petista. Jesus, preocupado, vestiu uma roupa branca, colocou um
estetoscópio no pescoço e, disfarçado, baixou num ambulatório do SUS. Depois de
fazer uns milagrezinhos de lambuja, como transformar água suja em antibiótico e
multiplicar as macas, mandou entrar no consultório um paraplégico, vítima de um
acidente de carro. Jesus colocou a mão numa perna do moço, e disse: “Mexa a
perna!” Ainda que contrariado, fazendo cara de escárnio, o rapaz tentou... e a
perna mexeu! Ainda estava surpreso, olhos arregalados olhando a perna, quando
Jesus pôs a mão sobre a outra perna e falou: “Agora mexa esta perna!” E a perna
mexeu! O moço mal se continha em seu espanto, quando Jesus falou: “Levanta-te e
anda!” Não deu outra. O ex-paraplégico saiu dando pulos de alegria do
consultório médico. Na entrada do posto de saúde encontrou o próximo paciente,
que lhe perguntou a meia boca: “O médico é bom?” E ele, parando de pular e
sussurrando: “Nada, nem mediu minha pressão!”
Agora com licença, que tenho uma defesa
por escrito para fazer.
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